quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Nei Lisboa 5: "Amém", 1993

Depois de um "jejum" de cinco anos sem lançar disco novo, Nei Lisboa lança em 1993 o disco "Amém". A gravação é toda ao vivo no Theatro São Pedro, famosa sala de espetáculos do centro de Porto Alegre. Antes disso, em 1991 ele lança seu primeiro livro, "Um morto pula a janela". Nessa altura, depois de passar algumas temporadas no Uruguai, Nei parece ter superado os anos difíceis do final dos 80's e recuperado a alegria no seu trabalho. Esse contato com o Uruguai, aliás, está extremamente impresso nesse disco.



Sonoridade muito mais positiva que o "Hein?!", tempero latino em praticamente todas as faixas (ênfase para o candombe uruguaio). É também bem mais diversificado em timbres e elementos harmônicos, como a volta dos teclados, o acréscimo de sopro metálico e belos backing vocals femininos. A roupagem pop ainda existe, assim como as baladas românticas, e a genialidade das letras continua a mesma. Ainda sobra algum espaço para o jazz, pra canções antigas e interpretações de outros artistas. Sem dúvida um disco mais "feliz" e heterogêneo que o anterior.

1. Amarycá
Som bem animado, com um swing bem típico de ritmos caribenhos, começa com um batuque que faz referência ao candombe. Nei conta com as participações de Cintia Rosa e Jaqueline Barreto nos backing vocals, muito bem harmonizados. Conta ainda com o "El Lobo" nas percussões, o violão de Carlos Badia, o baixão estalado de Zé Natálio (do Papas da Língua), Jorginho do Trumpete (advinha o que ele toca...), teclados de Mauricio Trobo e a bateria de Bebeto Mohr, sendo essa a formação base do disco todo. El Lobo e Jorginho são gênios consagrados, diga-se de passagem. A letra é um bem humorado mosaico tropicalista, onde o povo e a cultura latina "dominam e salvam" o mundo, além da sacadinha com o título/refrão da música: "Vai ser assim: a Mary cá, E a gente ali, invadindo o Tennessee, A Mary aqui, a gente lá, Salvando o Canadá". Aqui ele cita também o percussionista afro-uruguaio Rubén Rada, que mistura sonoridades do pop e rock ao candombe (sempre com muito romantismo).

2. Piratas do Capitão
A letra dessa música segue quase a mesma linha que a anterior, diversos referências world-pop, Andy Warhol, Beverlly Hills, São Paulo, Rio, Yellow Submarine,  We are the World, enfim, é a cultura latina invadindo o primeiro mundo e se misturando loucamente com ela. Muito genial. Essa começa partindo do alto, com pegada mais forte no refrão e mais suave nos versos. Apesar do climão mais pop, suave, a batida e as melodias não escondem um tempero de mambo cubano. Os backing vocals aqui também são maravilhosos. O trompete também é vital nessa faixa e o violonista Carlos Badia também canta. Aliás, o solo de trompete encaixa como uma luva.

3. Cha-Cha-Cha Moderno
Essa é uma das melhores faixas do disco, a letra é muito massa, uma óbvia homenagem ao ritmo cubano. "Andava assobiando ao sol, Pros lados de Tacuarembó, Quando esse cha cha cha moderno me volvió". Além do que ele cita o argentino Fito Paez, parceiro musical do Charly Garcia (muito bem discografado aqui no Blog pelo Rodrigo) e também faz uma auto-citação, de "Telhados de Paris", do disco anterior, lembram?, O som é de fato um cha cha cha morderno,  um tanto diferente do "original", com uma estrutura harmônica mais jazzy. O piano é bem dinâmico, claro, e o baixão come solto. O trompete marca mais uma vez presença fortíssima. E o backing vocal da Jaqueline Barreto é maravilhoso.

4. Romance
Nei toca o violão, dedilhados e acordes extremamente harmoniosos. Bela canção de amor, o nome diz tudo. Balada pop romântica com um acompanhamento simplório de teclados. A letra não foge a regra, apesar de sutilmente ser bem humorada e debochada: "Todas as bobagens que eu já disse, Dariam pra encher um caminhão, Mesmo assim encontro no caminho, Milhares mais otários do que eu".

5. Noites como essa
Essa tem uma letra bem luxuriosa, fala sobre sexo, paixão, dinheiro, nudez, noitadas. "Em noites como essa, E essa lua vagabunda e nua, Me chamam pra brigar, Me arrastam pro teu jeito de menina, Molhando lábios no sabor de uma maçã". Mas ao mesmo tempo consegue ser um tanto "romântica" também. Começa com um violão nervoso, tocado pelo próprio Nei, que dita a dinâmica da música toda. Apesar disso sem percussão (o violão já é bem percussivo). O baixão freatless é genial, tocado pelo Nico Bueno e o tecladinho do Mauricio Trobo aqui é maroto. Carlos Badia também canta nessa. Engraçado que o arranjo cria um clima bem "noturno", ao mesmo tempo que soa como algo mais campestre, e me lembra alguma coisa do Milton Nascimento.

6. Amém
Começa novamente numa pegada de violão, bem swingada. Pop com pegada latina,  alguma coisa que me lembra o mambo, com as percussões bem mais marcadas que nas anteriores, bem evidente. O trompete aqui também está maravilhoso, criando as tensões entre verso e refrão, contrapondo os backings, solando, enfim (aliás, nos backing vocals também está a Kity Santos). A faixa título tem a letra bem crítica, mas também de certa forma bem humorada, contra os costumes e dogmas religiosos. Parece que prega uma espécie de "fé livre". "Nossa Senhora é poderosa, Mas nossa raça é manga e rosa, A nossa igreja deita e goza, E onde há fumaça, deixa o pavio queimar, Amém".

7. O futuro do exterminador
Crítica ácida e quase direta aos detentores do poder, aos demagogos, ditadores. Começa com uma "fala" no background, algum discurso político, me parece. "Quê? Não pode ser, Olha aquele cara ali falando na televisão, Quem? Não pode ser, não, Olha esse retrato, é o diabo, Candidato a bom cidadão". Acredito que seja alguma referência ao Collor. O som é bem rock'n'roll, em moldes bem parecidos com "Hein?!", baixão bem marcado, cheio de slaps, guitarra nervosa (do Paulinho Supekóvia) aqui bem mais metal, com distorção e solos virtuosos. Uma boa combinação com a letra, sensacional.


8. Dirá, Dirás
Nei revisita sua própria canção, gravada no "Carecas da Jamaica", lembra? Aqui ela ganha uma roupagem também latina (se bem que a primeira gravação tem um pouco disso também). Essa mostra mais uma vez a habilidade do Nei como intérprete, mesmo que de si mesmo, hahaha. A sonoridade é meio pop meio rumba, principalmente pelas melodias do trombone.

9. Petit subversão
Uma sonoridade muito tranquila, suave, apesar das percussões bem marcadas. O baixão tem uma melodia linda, as notas dançam, e o contraponto do teclado e do trombone (o som mais feroz da faixa) encaixam perfeitamente nesse clima de "calmaria". A guitarra só entra pra completar tudo. A letra, perfeita pra essa sonoridade, é bem contemplativa, basicamente uma descrição poética de Montevidéu (e por quê não, de todas grandes capitais latinas). De quebra, surge no final a faixa incidental "Sei lá mangueira", do Paulinho da Viola e do Hermínio Bello de Carvalho.

10. Dio
A letra mais espiritualizada no disco. O mais interessante é a inversão dos valores de tempo, a velhice se torna o passado, e a juventude o futuro. "E eu só queria ser a humanidade, Alguma idade existe pra nascer, Vistes? Deixaste em mim, Saudades da velhice". Sensacional. Começa com uma melodia bem dedilhada no violão. A voz suave do Nei ganha o contraponto do maravilhoso solo da Jaqueline Barreto. Lindo demais.

11. Society assassinato
Jazz maroto, essa aqui. Nei quebra com toda a estética latina que ele vinha mantendo no show todo, até aqui. Jazz sem tirar nem por, pianinho bem sacado, baixo marcando, bateria muito característica, e aquele trompetinho, só pra selar. Ainda, de bônus, tem o maravilhoso backing da Cintia Rosa, num solo digno das divas do gênero. Tem a letra mais genial do disco, aliás, uma crítica bem humorada (e sarcástica, talvez) a xenofobia e o poder do dinheiro. Um detetive da Scotland Yard investiga um assassinato na alta classe londrina. "Em caso em que o mordomo é um lorde inglês, O jardineiro é um brasileiro, E vai pro xadrez - You're under arrest, Severino".

12. Hein?!
Mais uma vez Nei revisita a si mesmo, dessa vez a faixa título (e a melhor) do seu disco anterior. Novamente o tempero latino toma conta do disco, e o rockão da original se transforma num swingado onde o trompete, por sua vez, toma o lugar da guitarra nos riffs principais e onde as percussões reproduzem a bateria nervosa da primeira versão. O cara é gênio nisso mesmo.

13. Espiritu burlón
Devo confessar que essa é um enigma pra mim. Ele fala de um tal "espírito burlão" (enganador, trapaceiro) que vem, lhe assusta e vai embora. No fim, o espírito deixa "saudades", já que não mais o teme. Doidera. Imagino que seja uma metáfora, mas não sei sobre o quê, rs. Cantada meio em português, pelo Nei, meio em castellano, pelo tecladista Mauricio Trobo. Essa tem uma sonoridade mais "caribenha", lembra até um pouquinho os ritmos nortistas (como o carimbó) e nordestinos (como o baião). Um compasso bem doido, acompanhado pela banda toda, num swing malemolente (hahahaha!).

14. Candombe para Gardel
E Nei termina o show com mais uma interpretação, dessa vez uma canção do Ruben Rada (isso mesmo, aquele citado na primeira faixa), feita em homenagem (óbvio) a Carlos Gardel. Começa com um batuque bacana e o trompete bem animado. Parece até coisa de marchinha de carnaval, ou frevo, que mantém semelhanças com o ritmo uruguaio. Tem um ritmo gostoso, que se quebra na ponte pro refrão e novamente no refrão. O solo do trompete aqui consegue ser melhor que todos os outros. Contagiante. Fecha o disco com o mesmo espírito latino. E ainda rola uma palhinha de "Durazno y Convención", de Jaime Roos.


Bom, é isso, galera. O quinto disco do Nei, o primeiro gravado ao vivo. Incrível como é bem gravado, aliás. Nei quebrou bastante com a estética dos disco anteriores, se "latinizou". O Uruguai mexeu mesmo com ele. Pra mim foi ao mesmo tempo maravilhoso e difícil falar desse disco, porque tenho poucas referências em música latina, tive que pesquisar muito pra entender "um pouco melhor". Mas valeu a pena. Lembrando que os títulos das músicas também são links para os letras (exceto em "Petit Subversão", que não tem link...). No próximo post, vou falar do "Hi-Fi", de 1998, sexto disco do Lisboa. Valeu!

Disco na íntegra via YouTube:



5 comentários:

  1. "Amém" é aula de música pra essas bandas ~gospel~ por aí! XP

    "O Futuro do Exterminador" tem algo que me lembra "Brasil Mostra tua Cara".

    O naipe de metais na última faixa é pacabá!! Fecha com chave de ouro.

    No mais, é o Nei Lisboa apenas sendo Nei Lisboa ( = genial).

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  2. Que dizer né. Nei é genial. Uma obra prima issoaí.
    Sem mais

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  3. Eu estive neste show, tenho pra mim que foi gravado no final de 92 ou inicio de 93, nao lembro e tambem nao lembro se foram 3 ou 2 noites mas estive na noite de sábado. Ao entrar no teatro recebíamos o folder com a programação do show( quase certeza que o tenho ainda)...contendo os nomes das musicas e pequenos trechos das letras, por se tratar de um repertorio, em sua maioria, de inéditas. Fiquei na galeria lateral superior a esquerda de quem entra e tinha uma vista muito boa pro palco. O Som estava sensacional, muito bem equalizado e a banda perfeita. No trecho do disco em que Nei pede o que o publico quer ouvir, eu gritei "Paisagem Campestre" mas o que ficou registrado deve ter sido de outra noite. Do set do disco, nesta noite, Nei repetiu, creio que apenas, "O Futuro do Exterminador" e "Romance" para encerrar.

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