terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Nei Lisboa 3: "Carecas da Jamaica", 1987

Enfim o meu disco favorito do Nei, "Carecas da Jamaica", de 1987. Exatamente, ele levou três anos pra lançar material inédito desde "Noves Fora". Porém, esse 'jejum' parece ter sido extremamente significativo no resultado desse disco. Começa pelo fato de que, dessa vez, a gravadora era a gigante EMI (o disco foi gravado no Rio de Janeiro). Vale lembrar que com esse disco o Nei alcançou reconhecimento nacional e ganhou o antigo Prêmiao Sharp (hoje Prêmio TIM) de Revelação Pop/Rock. Difícil vai ser sintetizar tudo que dá pra falar dele. Mas vamos lá.


"Carecas..." é bem mais mais engajado que os dois discos anteriores. Tem uma veia política bem mais saltada, cheio de ironias, metáforas pra situação do país, um retrato crítico/poético da Era Sarney, mas também com um 'quesinho' deprê, a típica desesperança do fim dos anos 80, porém uma novidade no trabalho do dele. É um disco mais pessimista, digamos assim. Mostra o lado cronista político do Nei.

Em termos de som, ele é bem mais rock, com certeza. Não a toa, a galera do Engenheiros do Havaí participa de uma faixa (a faixa título, aliás), os caras tinham acabado de lançar seu segundo disco, "A Revolta dos Dândis" (que a Ju vai comentar aqui em breve), já com Licks nas guitarras, e a parceria entre eles foi ótima pro resultado de "Carecas...". Também passa por temas latinos, blues, jazz, típicos terrenos em que Nei pisa. Além de um novo tipo de experimentalismo harmônico, ele abusa de dissonâncias e harmonias que não se resolvem, estruturas não convencionais, recortes, letra 'declamada', enfim... Piração total. Contrastando com isso, o disco começa bem suave, com pop simples, bem arranjado, melodias lindas, começando por:

1. Rio by Night
Som bem suave, pop bem harmônico. Os arranjos são de Nei e banda. O destaque fica nas belas viradas e nos vocais dobrados. Me lembra bastante o pop bem trabalhado do Men at Work. A letra, em contraste, é bem engajada, toda cheia de referências as situações de desordem e letargia política do país ("E mais dia, menos dia, tudo se cria, tudo se perde, ninguém se espanta"), um tanto irônica, também. Os temas políticos vão sondar praticamente o disco todo.

2. Deixa o Bicho
Mais um pop extremamente melódico, com o refrão mais bonito do disco. A melodia da voz é realmente linda, e muito bem complementada pelos riffs de guitarra. Os teclados e baixão marcado, cheio de slaps, compõe a harmonia simples mas belíssima. Um solo de teclados é a cereja do bolo. Não perde nada pra clássicos do pop como Supertramp ou Tears for Fears. Os arranjos são do baixista Renato Mujeiko e a letra é de Nei e Gessinger, e me faz pensar em algo como o desejo de libertação, a fuga dos padrões comportamentais, a desilusão no mundo globalizado e na mídia, etc ("Minha gata não insista, Disneylândias não vão te levar pro céu").


3. Verão em Calcutá
Essa é mais swingadinha, mais 'veranesca', e os arranjos também são do baixista. Lembra até uma coisa meio country, com riffs de guitarra havaiana (slide). Também tem uma atmosfera mais pop, com apenas uma quebra de célula rítmica, no refrão, que faz toda a diferença. A letra compõe os temas musicais nostálgicos, com um clima mais melancólico, de desilusão mesmo. O refrão "C'mon baby, vamos passar bom verão em Calcutá, ao som do mar", parece um desejo de fuga, de sair daquela situação em que se encontra a política e a cultura brasileira, alienada de si mesma e da sua condição. Agora, não me pergunte por que Calcutá, se nem mar tem lá...

4. Maracujás
Uma verdadeira brisa, a letra dessa música. Na verdade me parece mais uma cena de completa apatia, inação, tédio. As nuvens de maracujá são como um calmante alienador, um sedativo pra "esse tédio moribundo, esse nó no mundo real". A letra é de Nei e Licks com arranjos de Licks. Começa com um sax bem típico do pop oitentista, e se desenvolve num piano a la Elton John, numa melodia suave de teclados e violão, guitarra tímida, sax sempre presente. Quebrando o clima pop, um único acorde dissonante, que se resolve  no verso "Maracujá...".

5. Junky
Ai começa a experimentação mais aguda do disco. A letra reflete bem a desesperança do junky, sua apatia, seus viagens entorpecidas. Mais uma com tema pessimista, e bem mais deprê. Totalmente experimental, uma quebra estética total com as faixas anteriores. Violão martelado, acordes dissonantes, com uma presença muito maior do baixo e suas melodias. Não coincidentemente a letra é de Nei com arranjos também de Mujeiko. A voz tem um reverb que dá à canção um sentimento de solidão imensa.


6. Schultznietsin is Down
A letra tem uma palavra em alemão, o suficiente pra tornar tudo mais dark, além de referências claras à "ameaça atômica", e fecha o ciclo de canções pessimistas, soturnas, down. Com arranjos de Dudu Trentin (teclados), esse som é o mais sombrio do disco. Trentin (que já tocou com Pepeu Gomes, Fagner, Zélia Duncan, entre outros) capricha nos teclados, usa timbres bem melancólicos, etéreos, que lembram bastante as bandas de darkwave da época, do gothic rock e afins. O melhor é o 'mambo' incidental em "Somos cucarachas e baratas sobreviverão".

7. Carecas da Jamaica
A parceria com os Engenheiros do Havaí fica clara na estética da faixa, que é basicamente a fórmula inicial dos próprios Engenheiros e de várias bandas nacionais e internacionais da época, como o The Police e os Paralamas do Sucesso, que se resume em misturar reggae, ska, e ritmos relativos, ao rock cru, 4/4 marcadão, mais pro lado do punk. Fórmula perfeitamente reproduzida nesse som. Os arranjos e o instrumental todo é de Licks e dos Engenheiros. A letra, claro, é a mais engajada, anti-facista, pró-minorias, anti-mídia, pró-revolução, escrita por Licks e Nei. Os caras ate tocaram esse som juntos. Assista aqui. Tá se perguntando por que "Carecas da Jamaica"? Presta atenção nas cores da bandeira gaúcha. ;-)

8. Declaração
Uma espécie de blues bem experimental, bem dissonante, com guitarras sobressaindo (os arranjos são do Licks). O mais interessante é que o vocal aqui começa meio que 'declamando' a letra, muda um pouco na segunda passagem, a terceira faz cantando e termina a quarta cantando e declamando. Simplesmente genial, em termos de experimento. A letra (bem intimista) é na verdade um poema do escritor Nei Duclós (segundo comentário dele mesmo aqui no Blog! Que honra!) e foi musicada pelo Mutuca, a quem Nei se refere diretamente no disco seguinte (ainda falaremos dele).

9. Dirá, Dirás
Mais uma crítica bem construída do momento político do país ("Restos de desejo, dinheiro, jogo de espelhos, Sobras de um almoço de urubu") mas que também cai numa tentativa de fuga ("A alma beat, em bytes, invites me, a revisitar highways"). Levadinha bem reggae, suave, com baixão bem dinâmico. Também tem uma mudança de andamento bem interessante, que transforma esse reggae em algo bem mais pop, mantendo as belas melodias de guitarras e teclados. O bacana é que essa transformação no andamento é toda a magia do som, dá uma dinâmica bem interessante. Um trombone compõe a harmonia.

10. Refrão
Blues meio jazzy, bem característico, bem 'óbvio'. O piano, claro, comanda o som, além dos solinhos de guitarra. É na letra que está o brilhantismo da faixa. Ironiza o próprio ato de compor uma canção, de "escrever refrão". É simplesmente foda. E o refrão então? O melhor de tudo. Metalinguagem pura. Além de ter recortes de conversas da 'galera' da banda e amigos. A faixa mais divertida do disco, e talvez a única.


11. Toda forma de poder
Minha faixa favorita do disco. Tudo bem que não é uma canção do Nei, mas é uma senhora composição do Humberto Gessinger, que o Nei teve a brilhante ideia de interpretar. E o fez de forma ainda mais brilhante. Com apenas o violão e a voz, ele ressignificou letra e melodia, deu ares melancólicos a canção raivosa gravada pelos Engenheiros do Havaí no disco "Longe Demais das Capitais", de 1986. Lindo demais. A faixa que me chamou atenção pro trabalho do Nei e pro "Carecas...". Me fisgou de uma forma inexplicável. Faça o teste você mesmo, ouça a versão original aqui e a interpretação do Nei aqui. É ou não é uma releitura incrível? A letra vou deixar pra Ju comentar. ;-)

12. Berlim - Bom Fim
Um som bem new wave, bem rock, guitarra pesada, agressiva. Tem também um quê de tango pairando ali, um violino bem choradinho, uma piano que bem poderia ter sido tirado de Gardel ou Piazzola. Tudo isso num clima bem urbano, o que casa muito bem com a letra, que relaciona a capital alemã ao bairro do Bom Fim, em Porto Alegre, berço musical de Nei (ele morou ali) e ponto de referência da vida noturna na capital gaúcha. Outro morador ilustre é o psicodélico Flávio Basso, o Júpiter Maçã.

                                                                   (Nei e Gessinger)

Bom, no geral, é isso. Daria pra fazer mais dezenas de comentários, mas ai fica foda né, tanto pra escrever quanto pra ler, (rs). O "Carecas..." é meu disco favorito porque criei uma relação afetiva com ele, foi o primeiro que eu ouvi na íntegra, o primeiro a me despertar pro som do Nei, e o fato mais relevante de todos, eu comprei essa bolacha por 100 pilas na minha primeira visita a Porto Alegre. Foi uma felicidade imensa encontrar essa joia ali na feirinha de discos de vinil do mercado central.

Como sempre, os títulos das músicas são links pras letras. O disco todo você pode ouvir no link abaixo. Espero que estejam gostando dos comentários sobres a discografia do Nei, eu to adorando fazer isso. No próximo post, o quarto e mais sombrio disco da carreira dele, "Hein?!" de 1988. Valeu, e até já!

Disco na íntegra:
http://www.youtube.com/watch?v=4qKw96MjVCM
(não sei por que, mas o Blogger não me permitiu colocar o vídeo direto aqui...)

6 comentários:

  1. O poema Declaração é de minha autoria, todo ele, publicado no meu livro No Meio da Rua (L&PM, 1979). Mutuca musicou o poema e gravou a canção. http://www.youtube.com/watch?v=m3dGa1VBoXI

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  2. legal! nunca tinha ouvido "Toda forma de poder" na voz do Nei... XD

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  3. Duclós! Que honra ter vc aqui no nosso Blog! Muito obrigado pelo esclarecimento, será corrigido já! Espero q tenha gostado do blog e nos visite mais vezes. Muito obrigado mesmo. Abraço!

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  4. Geniaaaal!! \o/ Eu nunca imaginei que Engenheiros e Nei Lisboa andassem tão em paralelo assim, tô fascinada... Tanto no estilo, na composição crítica... Demais! Eu tenho um fraco por essa pegada... Tô baixando os CD's dele pra conhecer mais, rs.
    P.S.: Me senti importante agora sendo citada... Hahahahaha.

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  5. Nei Duclós!
    Que honra recebermos sua visita!

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  6. Grande disco... Só uma correção, os Engenheiros ainda não tinham lançado o Revolta. Esse disco é anterior a entrada do Augusto na banda. Aqui ele era ainda da banda do Nei. Todos os engenheiros, até o Pitz participa da faixa titulo. Curiosamente é uma faixa que tocam juntos, Gessinger, Licks, Maltz e Pitz. Uma raridade.

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