quarta-feira, 5 de março de 2014

Especial Semana da Mulher: Miriam Batucada, "Amanhã Ninguém Sabe", 1974

Miriam Ângela Lavecchia, brasileira de origem italiana, nasceu e cresceu no bairro da Móoca, em São Paulo. Eis o principal motivo de ter escolhido ela como homenageada, tenho uma forte ligação com aquela região, tanto familiar quanto "mística" (rs). Dali também saiu um dos maiores grupos vocais da MPB, os Demônios da Garoa, que uniram o típico sotaque "mooques" com o linguajar popular dos engraxates do centro. E Miriam não era diferente, o sotaque é inegável e também é marcante no seu cantar. Mas a grande marca registrada seria o batuque mesmo, que ela aprendeu quando criança.

E desde criança ela se envolveu com música, cantava de tudo, aprendeu o violão e a harmônica (tipo sanfona, não gaita) e diversos outros instrumentos. Cantava nas festas e concursos de calouros do bairro. Foi revelada ao público em 1967, numa participação explosiva no programa do Blota Jr, na TV Record, onde ela tocou todos os instrumentos que estavam no palco (lembrando que na época a Record era líder de audiência). Dai pra frente vieram convites de todos os lados, shows e programas de TV, inclusive fora do país.

Apesar de tamanho sucesso, Miriam gravou apenas dois LPs, um em parceria com Raul Seixas, Sérgio Sampaio e Edy Star (esse mesmo, muito bem comentado pelo Sallinas aqui no Blog) o "Sociedade da Grã-Ordem Kavernista", e o outro é este aqui que eu vou comentar agora, "Amanhã ninguém sabe", de 1974.




"Amanhã Ninguém Sabe" foi  lançado pela Continental, e reúne alguns grandes clássicos do samba interpretados pela voz poderosa da Miriam Batucada. Contém ainda uma composição autoral, a faixa "Você é seu melhor amigo". Como na maioria das faixas o samba impera, vou focar os comentários na interpretação da Miriam e referenciar os compositores, além de citar outras interpretações consagradas, ok? Vamo lá:

Miriam começa o disco batucando nas mãos e unindo dois grandes clássicos, o primeiro de Zé Maria e Alvaiade, e o outro de Pereira da Costa. "O que vier eu traço" fala da facilidade de sambar e tocar o samba, da malandragem, da mulecagem, resume a Miriam, na verdade. Tem uma ótima interpretação também da Baby Consuelo"Teco-Teco" lembra da infância falando das bolinhas de gude. Essa também tem diversas interpretações ótimas, ouça aqui. Imagino a "muleca" Miriam brincando com os meninos do Móoca. Interessante essa mistura bem autobiográfica das músicas, sua postura diferente, da menina que "não fazia roupa de boneca nem fazia comidinha". Genial. Logo de cara Miriam diz quem é e pra que veio.

A faixa original de Pedro de Sá e Ary Machado Pavão é bem tristonha, no melhor estilo seresta a meia luz, de baixo da janela da amada, hahaha. Miriam resgata esse sentimento numa interpretação que começa lenta, deprê, mas que não demora muito já se transforma num sambinha. A voz dela está demais nessa faixa. Outra interpretação bonita dessa canção é da dupla Pena Branca & Xavantinho. A letra é um apelo pra "formosa morena" deixar a cidade e voltar pro campo. Linda, linda.

Sambinha crônica de Sá Roris e Leonel Azevedo, mais conhecido pela interpretação do sambista Almirante. A letra é genial, conta a história de alguém doente que "com medo de fazer despesa" não vai ao médico. A narrativa é genial, e lembra bastante algumas músicas de Noel Rosa, como o clássico "Conversa de Botequim". Uma das minhas faixas favoritas, que na voz da Miriam ficou ainda melhor, mais "paulista", por mais que a história se passe no Rio de Janeiro, rs.



4. Felicidade
A consagrada canção do gaúcho Lupicínio Rodrigues foi repaginada aqui, com um arranjo mais bossa nova, pianinho jazzy, guitarra e tudo mais. Miriam mostra mais uma vez que sua voz se encaixa melhor nas "lentinhas", românticas, choradas. Uma excelente interpretação de um grande clássicos: não tem como ser ruim. E essa letra então: "Felicidade foi se embora, E a saudade no meu peito ainda mora, E é por isso que eu gosto lá de fora, Porque sei que a falsidade não vigora".

5. Meu Romance
Sambinha sem tirar nem por, escrito por J. Cascáta, fala basicamente sobre um romance que começa ali "embaixo daquela jaqueira" e que muda por completo a vida do narrador. Aqui o batuquezinho da Miriam reaparece pra fechar a faixa. A canção ficou mais conhecida na interpretação do Orlando Silva.

http://www.youtube.com/watch?v=N4EmHARz2Zg

6. Você é seu melhor amigo
Aqui a Miriam ataca de compositora com a música com a mensagem mais forte do disco, de auto-confiança, empoderamento, independência e liberdade individuais. "Você precisa aprender a se amar, Você precisa viver bem com você, Olhar pra dentro sem ter medo de se enxergar, Criar coragem, só contar com você". Extremamente inspirador. Mostra de fato a mulher moderna e independente que era a Miriam, mesmo sendo de bairro e família tradicionais.



7. Eu quero botar meu bloco na rua / Amanhã ninguém sabe
A faixa mais audaciosa, união de dois gênios da MPB, Sérgio Sampaio e Chico Buarque. Sérgio foi companheiro de Miriam na "Grã Ordem" e ela gentilmente lhe homenageia cantando o maior clássico dele, tudo a ver com esse carnaval (que já foi, aliás...rs), numa interpretação tão dramática quanto a original. A canção de Chico é não menos genial, mas aqui a Miriam faz uma versão mais tranquila que a original, mais romântica. Perfeita síntese ela fez aqui, com a célula rítmica da música mudando na passagem de uma canção pra outra. Ficou perfeito.

8. Acertei no Milhar
Sambinha delicioso, composição genial dos sambistas Wilson Batista e Geraldo Pereira, mais conhecida pela maravilhosa interpretação do carioca Moreira da Silva, no mesmo estilo "crônica" de "Apanhei um resfriado". Aqui, o narrador "ganha no milhar" (jogo de azar) e decide mudar de vida, quebrar os móveis, comprar coisas caras, enfim. É hilário. Esse estilo de escrever samba é muito criativo, e dá espaço para momentos "cênicos" no meio da faixa, tanto na original quanto na interpretação da Miriam.

http://www.youtube.com/watch?v=a2DGUc7VKVE

9. Você vai se quiser
Clássico do Noel Rosa, aqui interpretado com muita graça. A letra fala de um marido que não quer obrigar a mulher a trabalhar, mas também reclama dela não trabalhar. Uma mensagem curiosa, principalmente pensando na época que foi escrita pelo Noel. Bacana que aqui tem tipo uma guitarrinha complementando a harmonia, algo bem diferente do que se ouve na maior parte do disco.

http://www.youtube.com/watch?v=QIJQOzCQe8I

10. Tudo em P
A minha faixa favorita. Adoro essas letras escritas em aliteração. O título da faixa diz tudo, praticamente a letra inteira tem palavras que começam com a letra P. É genial demais, não só pela figura de linguagem mas pelo sentido da narrativa, que não se perde. Essa pérola foi composta por Jorge Nóbrega e Ângelo Dalerte, também eternizada na interpretação do Almirante, um chorinho maravilhoso. A faixa mantém o bom humor das anteriores e é maravilhosamente cantada por Miriam (baita letra difícil!).


11. Conversa de Samba
Mais uma ousadia da Miriam nessa faixa, que começa com um toque "rockabilly", bem no espírito da Jovem-Guarda, uma provocação claro, afinal a letra é uma exaltação ao samba ("Isso é conversa e com, conversa não me iludo, Pois o samba está com tudo, Viva o samba que é o maior").  E essa brincadeira continua durante a faixa toda. Sensacional. A composição é de Denis Brean e Oswaldo Guilherme.

12. O Show Já Terminou
E o disco termina com um joia da dupla dinâmica da Jovem-Guarda, Roberto e Erasmo Carlos. A dupla compôs essa canção em 1976, e se você não conhece, vale a pena ouvir também a original, gravada por Roberto. A letra é bem triste, uma desilusão amorosa, consequentemente a música é linda, e a Miriam não faz feio, interpreta maravilhosamente esse clássico, com energia, a voz mais poderosa que nunca, com sua roupagem de sambão swingado, mas também triste e dolorido. Maravilhoso.

http://www.youtube.com/watch?v=xKSqjIu3COw


E assim termina "Amanhã Ninguém Sabe". Fico muito feliz de poder discografar a Miriam Batucada, admiro muito o trabalho dela, sua voz e seu talento pra música, sua história de mulher forte e independente. Infelizmente, ela morreu nova, em 1994. Mas enfim, fica ai a minha homenagem ao Dia Mundial da Mulher e a todas as mulheres que fazem música. Lembrando que os títulos das faixas são links pras letras, ok? Infelizmente não achei o disco todo pra ouvir no YouTube, por isso coloquei os vídeos faixa a faixa das que estavam disponíveis. Aqui também tem um link pra baixar o disco em MP3. Valeu!!!

2 comentários:

  1. A Miriam era genial, pena não ter sido reconhecida à altura.
    Esse álbum é fantástico. Não dá pra escolher uma faixa que seja a melhor, porque são todas excelentes.
    Grande lembrança. Grande homenagem. Ela não merece menos.

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  2. Como a Míriam gravou em 1974 uma canção composta por Roberto e Erasmo em 1976?

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