quinta-feira, 22 de maio de 2014

Raul Seixas 17 - A Panela do Diabo (1989)

Oi, eu sou o Salinas! Chegamos ao último disco do Raul. Doente, mal-e-mal parando em pé, para ele era um esforço cada vez maior compor e gravar. Há anos não subia num palco. Já se dera por satisfeito com seu último álbum, mantendo o tom de despedida que já vinha cada vez mais presente desde Mata Virgem. Mas Marcelo Nova, alguns anos mais novo e que na juventude era seu fã, quis gravar uma faixa com ele com sua banda Camisa de Vênus. Fizeram shows juntos e gravaram este disco, que depois de tantas despedidas, nos deixa um último Raul Seixas tentando sorrir e se alegrar antes do fim. Foi graças a Nova que Raul "morreu em pé", como ele mesmo disse.

A ideia geral do disco tem um jeitão diferente, já uma cara meio de 90's, "prevendo" o que viria nos anos seguintes. Mas a energia de Raul é mínima: apesar do esforço, a doença já apagava seu próprio brilho. Nova dá aquele reforço, e o que vemos é um cara já se preparando pra ir embora, mas vendo fluir a energia da nova geração; vendo que o mundo, afinal, vai continuar a rodar.

"Be-Bop-A-Lula" (Gene Vincent / Bill "Sheriff Tex" Davis)

Nesta curta intro só com voz, Raul e Nova entram cantando juntos este clássico do rock. Só um aperitivo do que viria a seguir: dois roqueiros da pesada mandando ver a melhor cartada, ~como se fosse a última~, no verdadeiro espírito do... "Rock 'n' Roll" (Nova / Raul)

Agora sim entra a banda, naquele estilão inconfundível rock 50's. Raul faz um balanço de sua carreira, desde os tempos em que era ridicularizado por "imitar Little Richard e se contorcer", passando pelo "teatro Vila Velha", de onde aproveita pra mandar uma alfinetada no pessoal da "bosta nova". Nova também aproveita pra dar suas estocadas, como quando a "Camisa de Vênus" foi proibida de aparecer na TV por causa do nome, cospe em cima das críticas aos ~traidores do movimento~ como João Gordo, que já era criticado naquela época, enquanto Dado Dolabella ainda só brincava com carrinhos. Lembram ainda que o "rockão antigo", apesar da super-exposição num mundo em que ~tudo é rock~, ainda tem o seu valor. Na última estrofe, Nova manda um recado que ambiguamente se dirige ao Rock ou ao próprio Raul: sim, sabemos que sua hora está chegando, mas estou aqui com você e vamos "até o fim". Esta música iniciou a longa e já famosa briga entre Caetano Veloso e Lobão, brilhantemente explicada aqui.

"Carpinteiro do Universo" (Raul / Nova)

Um pianinho pra descansar da pauleira. Raul, já resignado e deixando este mundo, se pergunta por que passou por aqui. Ele que só quis ajudar da forma que encontrou, deixando acesa a luz do quarto para ninguém tropeçar ao chegar. Mas lembra que no fundo, a vontade de ajudar não passa de puro egoísmo, como já dizia Nietzsche, pois fazendo o bem para os outros buscamos atingir o nosso próprio conforto emocional/psicológico/espiritual. Quando estendemos a mão ao próximo, nem sempre sabemos o que o outro realmente precisa, mas sim apenas o que achamos que ele precisa, e podem ser coisas bem diferentes. No fim das contas, ele não é o Carpinteiro do Universo, mas sim de si próprio, já que a oportunidade de evoluir está nessa própria conclusão atingida.

"Quando Eu Morri"  (Nova)

Uma basezinha simples de violão, e um descanso pro Raul: agora é só o Nova. Uma primeira análise acha que a letra fala sobre overdose, mas não é nada disso. Nova, aos 38 anos, já não mais uma criança, e vendo seu ídolo moribundo, cruzava a "esquina da vida" que todos nós cruzamos um dia. Nesse momento se faz uma escolha: ou "lamber suas feridas", repassando suas experiências anteriores em busca da evolução enquanto ser humano, ou se "entorpecer com os desejos e esquecer de tudo que ainda não entendeu", deixando os vícios acumulados desde a infância começarem a cobrar seus preços, que começam baixos mas aumentam cada dia um pouquinho, até que "num dia de sol, a cabeça no meio fio".

"Banquete de Lixo" (Nova / Raul)

Raul já descansou e agora volta, numa faixa lenta, trôpega, arrastada como ele próprio. Nova aparece só reforçando no refrão. Ele começa contando o famoso episódio do banquete de lixo que ele presenciou em Nova York, entre outros, que poderiam ter sido com qualquer outro antes dele, ou mesmo depois. Sim, ele sabe que a vida continuará depois dele: "O hoje é apenas um furo no futuro / Por onde o passado começa a jorrar"(Desculpe, eu evito ficar colocando muito destaque nas citações, mas desta vez não teve jeito)

"Pastor João e a Igreja Invisível" (Raul / Nova)

Agora novamente um rock and roll... "Solta a Igreja invisível aí meu filho", e um puta solo de órgão pra quebrar tudo mesmo! Raul Seixas, mesmo doente, testemunha a moçada chegando depois dele com a corda toda: a vida vai continuar! Já na época, e desde bem antes, as igrejas das ~renovações~ do ~carisma~, igrejas ~internacionais~, igrejas dos ~pentecostalismos~, se proliferavam, com seus ~berreiros~, ~tremeliques~, ~depoimentos de sucesso~ e ~propósitos~ discutíveis: "Ahhh, me passa a virgem aí, por favor... hmmm...."

"Século XXI" (Nova / Raul)

Baladinha mais lenta. Depois de tantos sonhos que se foram, tantas alegrias e tristezas, Raul chega à conclusão que no fundo o mundo é isso aí mesmo. Não se deve desanimar por não conseguir realizar aquilo que quer, porque tá todo mundo na mesma, "bem vindo ao século XXI!" O que não pode é esmorecer: não venda jamais "sua alma ao acaso", nunca perca o rumo. Apesar de tudo, sonhe, busque, tente, construa. Não passe anos a fio esperando uma vida melhor. Acerte. Erre. É melhor se arrepender de algo que fez, do que "em troca receber os pedaços, cacos de vida de uma vida inteira".

"Nuit" (Raul / Kika Seixas)

Agora, numa entrada triunfal de rock, quem fala é Nuit, a divinidade feminina da Thelema, relacionada ao todo universal: a pura potencialidade que reside no mundo físico, mas principalmente no mundo exterior, ou no "além". Em outras palavras, trazendo para o conceito ocidental, é a própria Morte, que "ama a guerra e ama o fogo", seus instrumentos de trabalho. "Jamais se revelará", posto que é "elemento natural do jogo" e portanto tem seu lugar garantido na natureza, não importa o que façam os homens para entendê-la e desmascará-la. É também democrática, "acende as luzes da festa" (~festa~ é pra ela, né) para qualquer tipo de pessoa, "seja bom ou o que não presta".

"Best Seller" (Nova / Raul)

Aqui Raul parte da mania dos ~best sellers~ com conteúdo supostamente místico (talvez ele se refira ao "Um", do Richard Bach, que saiu nessa época), pra falar sobre o controle midiático no novo Brasil pós-ditadura. Raul plugado, muito antes da internet, está cético com os fatos importantes da época, como por exemplo a  parceria entre Sting e Raoni pela defesa das terras indígenas, e os "resquícios militares" (seria uma indireta profética para a polícia militar?).

"Você Roubou Meu Videocassete" (Raul / Nova)

Percebe-se claramente alguém com ciúmes. Seria a mulher de Raul dando sumiço no videocassete dele? Mas Raul sempre pareceu um cara mais de livros que de filmes... pode ser também uma crítica à TV, que tomou o lugar do videocassete (na verdade ele é que tentou tomar o lugar da TV, mas não conseguiu - bom, a briga tá aí até hoje, com outros nomes.) Poderia ainda ser uma alegoria, a última, à ditadura já enterrada, que via nele um "controle remoto" da geral, que "quebrou sua guitarra" e "quis que ele comesse calado", mas "hoje na distância foi ela quem sumiu". Se bem que no "é melhor desligar" tem mais cara de briga de casal mesmo. Estaria ele apenas pensando em terminar? Ou já tocava o foda-se, o grande Foda-se dos moribundos? O último mistério do Mestre...

"Cãibra no Pé" (Raul / Nova)

Um hino de desgosto ao Brasil. O mesmo cara que não gosta de Raul "porque é muito metido a hipponga" é o cara que teria orgasmos nesta letra, desejoso de sair deste "país de merda" e ir limpar privadas para gringos. A letra tem mais cara de Nova que de Raul, mais punk que rock, mais protesto que filosofia.
A última música do último disco sempre tem um significado especial pra mim, principalmente quando o artista é falecido. Parece que, no exato momento em que a última nota da última música do último disco (que no caso do Raul, não é nem dele, mas do Nova) termina de soar, é o exato momento da morte. Sinto naquela exata fração de segundo, os olhos perdendo a expressão e ficando vidrados. O médico dizendo que não há mais nada a fazer. O retrato colorido se torna P&B, surge a moldura e a legendinha dourada:

Raul Seixas, 1945-1989. 
"Nós gritamos um pouco, 
quebramos algumas vidraças... 
mas tudo bem."

E fim de papo. XC

Mais infos sobre o disco, aqui. E quem não Youtubar no encontro pode quebrar o galho nas boas casas do ramo:



E é isso!

6 comentários:

  1. Incrível né? Mesmo nas últimas o cara ainda dava tapa na cara. "Carpinteiro...", "Banquete..." e "Pastor João..." não devem em nada pros grandes clássicos setentistas do Raul. Um final glorioso pra uma carreira gloriosa.

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    1. Esse disco é foda demais! E toda vez que ouço ele, especialmente a "Pastor João...", lembro daquela festa de fim de ano na casa da Renata, que a gente ouvindo Raul a noite toda, kkk....

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  2. Ouvi dizer que "Você roubou meu vídeo cassete" era pra Lena Coutinho, que largou o Marcelo pra ficar com o Raul, e no final, largou ele tb.
    ...Xingou, reclamou e chamou ambulância / Mas hoje na distância foi você quem sumiu.

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  3. Também ouvi dizer que" vídeo cassete" foi pra uma das ex mulheres, que teria levado ó vídeo cassete dele. Mas não sei qual delas.

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