Parece que com este disco a sorte sorri ainda uma vez mais para Raul. (Nessa mesma época ele conhece Lena Coutinho, que será sua última companheira.) É o primeiro disco de Raul feito depois da ditadura finalmente acabar. O que não significa que as críticas tenham acabado. Ele continua pensando na situação do país e em seus questionamentos filosóficos. Mas não tem como não perceber um cheiro de "vai essa mesmo", tipo colcha de retalhos: pegou o que andava fazendo, juntou com mais uma ou outra guardada na gaveta, e pronto, "Larga Ricky!" (Ricky Ferreira tocou praticamente tudo neste disco -- com exceção do baixo e bateria, e em algumas faixas guitarra -- e também criou os arranjos, mixou e ajudou Raul na produção)
"Abertura / Quando Acabar o Maluco Sou Eu" (Raul / Lena / Cláudio)
O disco começa com uma batida de batera, meio grave e séria, interrompida subitamente pelo Raulzão mandando o título, no melhor estilo Elvis! É pra quem leu a capa do disco e não entendeu nada. Raul deve ter ouvido poucas e boas nos últimos anos, ainda mais por causa da bebedeira. Fala sobre viver sem questionar o que vive, aceitando só a versão dos jornais, citando de passagem a Guerra Fria com suas bombas, que pouco afetam o "seu Zé preocupado" com coisas prosaicas, diferente dele que era sempre quem levava a "culpa" por dizer o que pensava em suas letras. Lembra ainda a Balada do Louco, e pede ~desculpas~ irônicas pelo que fez no passado com os milicos, afinal "é tudo gente fina, meu advogado jura" (sei...) E no final, "é... a coisa tá assim...", não sei por que, eu sempre tenho a impressão que ele vai falar mais alguma coisa.
"Cowboy Fora da Lei" (Raul / Cláudio)
O outro hit do disco, teve até clip na Grobo. Apesar da temática de faroeste, Raul fala sobre pacifismo e guerras. Não há necessidade de morrer numa guerra, ou "dependurado numa cruz" ou do jeito que for, só pra "servir à pátria amada" ou "entrar pra história". E nas entrelinhas ele conta o caso de J. F. Kennedy, que foi assassinado em 1963. Uma das teses é que Kennedy foi assassinado a mando dos republicanos, pois viu que a coisa estava feia e tentou retirar as tropas americanas do Vietnã. (retirar as tropas, em vez de vencer fodonamente, seria uma vergonha sem precedentes para a terra da liberdade, mas no fim os americanos apanharam até não poder mais, e a retirada foi feita do mesmo jeito, por Nixon -- um republicano). O mesmo aconteceu com Tancredo Neves, o primeiro presidente eleito após da ditadura, mas que morreu antes de assumir (porém por doença, não assassinato). E Raul não queria esse mesmo fim pra ele, fugindo do poder e de grandes posições. Talvez com isso ele esteja fugindo também do status de ~mestre, guru, profeta~ que vinham dando a ele há vários anos.
"Paranóia II (Baby Baby Baby)" (Raul / Lena / Cláudio)
A princípio um remake da "Paranóia" que ele gravou lá atrás, mas na verdade ele aproveita apenas a levada repetitiva, referindo-se aos momentos de abstinência de cocaína. Em biografias, Kika Seixas afirma que, não sabendo mais como esconder a droga de seu marido, resolve colocá-la num saquinho e engoli-la, portanto "escondendo-a na barriga". Mas essa busca incessante pode ter uma leitura mais fatalista, ele pode estar procurando desesperadamente um sentido para a vida que ele vê se esgotando depressa, e esse sentido pode estar em sua descendência. Mas é estranho ele pensar nisso já com três filhas (Simone, com Edith; Scarlet, com Glória Vaquer; e Vivian, com Kika). Eu fico com a leitura drogada...
"I Am (Gita)" (Raul)
Versão em inglês da clássica Gita, mudando um pouco os versos para rimar mas mantendo a ideia geral, e citando também a Lei de Thelema, juntando em uma só letra o Bhagavad-Gita com o Livro da Lei, que para ele foram duas importante influências desde os tempos da Sociedade Alternativa.
"Cambalache" (Enrique Discépolo / Versão: Raul Seixas)
Este é um famoso tango argentino (pleonasmo?), escrito por Enrique Discépolo mas regravado por Carlos Gardel, Julio Sosa y otros también. Raul traduz a letra para o português, apenas alterando aqui e ali para manter as rimas, e trocando alguns dos nomes citados. Mas mantendo a ideia geral: o desgosto com a situação geral do mundo, e da falta de confiança, escrúpulos e altruísmo entre as pessoas.
"Loba" (Raul / Lena / Cláudio)
Raul compõe aqui sua versão de Lolita. Usa desde timbres de teclado até recursos de linguagem, como repetição de sílabas e um trava-língua com cara de tatibitate em "índole de loba libidinosa" para criar a atmosfera infantil. Raul fala sobre os encantos escondidos dessa que devia ser apenas uma menininha, mas já sabe muito mais do que aparenta. E pelo jeito Raul cai nessa armadilha. Terá ele se envolvido com as novinhas nessa fase junkie?
"Canceriano sem Lar (Clínica Tobias Blues)" (Raul)
O bom e velho rockabilly, lentão com aquele cheiro do jazz que o originou. Sim, Raul fala de si mesmo, canceriano (21'jun a 20'jul - ele é de 28'jun), doente, agora separado, sozinho, "sentado em minha cama / tomando meu café pra fumar". Uma tal Clinica Tobias existe mesmo, só não se sabe se é a mesma que ele teria frequentado, provavelmente para tentar se livrar das drogas. Afinal, onde mais Raul tomaria um simples e inocente café antes de um mais simples e inocente ainda cigarrinho? (na época né) Mas, mais que tudo, ele expressa a tristeza, solidão e monotonia de seus últimos anos: "Pergunto à nuvem preta / quando o sol vai brilhar".
"Gente" (Raul / Cláudio)
A minha faixa favorita do disco! No meio de sua solidão, ele pensa em sua condição humana e por que chegou a este ponto. Por que nunca estamos satisfeitos, mesmo com conforto material? Claro, no caso dele as coisas de fato iam mal, mas mesmo se estivessem bem, se ele estivesse saudável e com uma família e amigos reais, ainda assim alguma coisa estaria faltando. Nunca vai estar perfeito, nunca vai estar bom. Claro, pois gente (como ele, eu e você) não foi feito pra trabalhar, pra ficar deitado olhando pro teto ou pra se conformar. Não, "gente nasceu pra querer"!
"Cantar" (Raul / Cláudio)
Raul cita algumas de suas letras anteriores, como Ouro de Tolo, Mosca na Sopa, Maluco Beleza e Eu Também Vou Reclamar. Estará ele passando o bastão? Agora que viu seu grande inimigo caindo, os militares, e já no fim da vida, está cansado de joguinhos e significados ocultos, e agora vai "cantar por cantar", o que der na telha. Ou estará ele se referindo à censura que não existe mais?
Mais infos sobre o disco, aqui. E quem não encontrar nos bons ramos da casa pode quebrar o Youtube no galho:
E é isso!
Não sei o que comentar desse disco... Acho tão "superficial", perto de tudo que o Raul já tinha feito. Claro, as circunstâncias eram fodas, mas enfim... Pelo menos colocou o cara pra trabalhar de novo.
ResponderExcluir"Quando acabar..." e "Cowboy Fora-da-lei" valem o disco.
ResponderExcluirE ainda tem "Canceriano sem Lar" e a versão de "Cambalache". Enfim, um "baita" disco.
Frase favorita: "Eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz"