Nota 9,5
Crise interna. Sucesso de “Recipe For Hate”. Entrada no mainstream.
Contrato com gravadora major
(Atlantic Records). Brett Gurewitz
afundado no crack. Sua gravadora Epitaph ganhando milhões com o sucesso do Offspring. Punk Rock no topo das paradas e da MTV.
1994 - essa é a uma sucinta descrição
do cenário que envolveu a concepção e o lançamento de “Stranger Than Fiction”, 8º
disco do Bad Religion, tido por
muitos como o melhor da carreira da banda.
Após finalmente romper a barreira
do underground e atingir pela primeira vez as paradas, o Bad Religion estava
entre a cruz e a espada: o racha
fortíssimo entre os principais compositores e “cabeças” da banda, o
vocalista Greg Graffin e o
guitarrista Brett Gurewitz,
principalmente por conta da traumática
saída do grupo da gravadora Epitaph (leia mais sobre isso no post anterior),
estava ainda maior e as discussões acerca do disco novo começaram já na escolha
do repertório, com Brett exigindo que a banda regravasse o hit “21st Century (Digital Boy)”, lançada no
disco “Against The Grain”, em 1990.
Cara de poucos amigos na sessão de fotos de STF |
“Nós brigamos muito”, admitiu mais tarde, em entrevistas, o
baixista Jay Bentley. “Nós quatro queríamos que ‘News From the
Front’ entrasse no tracklist oficial do disco, mas Brett insistiu que fosse a ‘Digital
Boy’ novamente.” Como o guitarrista era o compositor das duas canções, a
solução foi lançar duas versões de “Stranger Than Ficton”, sendo que
“Digital Boy” permaneceu no tracklist oficial da versão americana do disco e a
“News...” entrou como bônus (junto com
“Markovian Process”) na versão lançada no resto do mundo.
E se os ânimos estavam acirrados
no “social”, no setor criativo, o Bad Religion estava “voando baixo”,
literalmente dando aula de como fazer Punk
Rock melódico e contestador, com letras inteligentes. Diferentemente do
direcionamento mais alternativo e experimental que adotaram em “Recipe
for Hate”, “Stranger Than Fiction”
ficou marcado como um raríssimo caso de “se
vender ao contrário”, pois a banda, que pela 1ª vez estava em gravadora
major multinacional, figurando no mainstream, com distribuição mundial e acesso
às rádios e MTV, musicalmente fez um dos
discos mais Punk de sua carreira! A própria gravadora Atlantic não ficou muito feliz com o resultado “não-tão-comercial” das músicas
apresentadas pela banda e mostrou não saber trabalhar muito bem com um artista
“musicalmente livre”.
Capa do single 'Digital Boy' |
A principal “mancada” dada pela gravadora foi a escolha errada dos singles. Enquanto a principal rádio de rock de Los Angeles na época, a KROQ, percebeu o enorme apelo comercial
da semi-balada “Infected” e começou
a rolar a música por conta própria na programação, “sem incentivo” (ou jabá) da Atlantic, a gravadora
absurdamente preferiu lançar “21st
Century (Digital Boy)” como 1º single
do disco, fazendo com que o disco, embora ainda com boas vendagens,
chegasse apenas ao número 87 do Top 200 da Billboard, na época do
lançamento, e a disco de ouro (500 mil cópias vendidas nos EUA) somente
quatro anos depois, em 1998.
Assim, após 5 semanas de gravação, entre abril e maio de 94, no estúdio Rumbo Recorders, em Los Angeles, sendo um disco “bem punk” e “pouco comercial”,
e lançado por uma gravadora major de alcance
mundial, “Stranger Than Ficton” veio
à luz no dia 6 de setembro de 1994,
bem no meio do turbilhão que o Punk Rock Californiano havia entrado
meses antes, com o sucesso mundial
de Green Day e Offspring, e seus magistrais “Dookie”
e “Smash”, respectivamente. De fato,
mesmo com as “mancadas”, “STF” fez
justiça ao Bad Religion e colocou a
banda em seu devido lugar junto aos “picas do rolê” da época, fazendo-os serem
reconhecidos como os “pais/criadores” do estilo que agora estava no topo.
O "hype" na revista RIP, já sem Brett |
De bolsos cheios devido ao
contrato com a Atlantic, o Bad Religion chamou o renomado Andy Wallace para produzir “STF”. O produtor, que já havia
trabalhado com Slayer, Sepultura e Aerosmith, além de ter mixado o clássico “Nevermind”, do Nirvana,
fez um bom trabalho ao deixar o som de “STF”
incrivelmente audível, com uma nitidez espantosa e os instrumentos “na cara”. O único porém
foi que, como em qualquer disco muito produzido, as guitarras acabaram diluídas pelo peso estrondoso do baixo, soando limpas e pouco distorcidas. Esse é o único motivo do disco receber, de mim,
a nota 9,5 e não 10...
Ao todo, 19 faixas foram gravadas para “STF”, sendo que 15 entraram no lançamento americano
(totalizando 38 minutos), 17 no
lançamento mundial (com cerca de 42 minutos, como a versão brasileira), 18 no lançamento japonês, sobrando um único som usado como “lado B” de
single (“Mediocrity”). A divisão na composição foi novamente equilibrada, com
Greg compondo 10 músicas e Brett as outras 9. Jay Bentley e o baterista Bobby
Schayer também levaram créditos de co-autores (junto com Brett) em “News
From the Front”, fazendo com que, novamente, o BR tivesse outro disco sem
contribuições do guitarrista Greg Hetson.
Mr. Brett orgulhoso de sua criação |
E foi justamente no “departamento guitarrístico” que o Bad
Religion acabou sofrendo a maior baixa
por conta das tretas durante o
período que antecedeu o lançamento de Stranger Than Fiction. Apesar de ter se afundado
novamente no vício do crack, Brett Gurewitz agora era um bem
sucedido empresário milionário com
sua gravadora Epitaph, graças às
estratosféricas vendas de “Smash”,
do Offspring, que em 94 atingiu a
casa de 5 milhões de cópias vendidas. Da noite para o dia, em pleno período de
produção do disco de sua banda (e pela
primeira vez sem o seu controle da mesa de som), ele estava tendo que se virar
para conseguir estruturar a sua “gravadora independente”
para conseguir atender à demanda milionária do disco do Offspring.
Apesar de se garantir no business,
mandando bem com a enorme demanda do Offpring e aproveitando o embalo para
fazer várias outras bandas de seu selo despontar
para o sucesso (como Rancid, NOFX, Pennywise...), Brett acabou espanando
no lado do Bad Religion, com rusgas fortíssimas com Greg Graffin e, principalmente, com Jay Bentley, de quem também era
“patrão” na Epitaph (já que o baixista
foi por anos um dos poucos funcionários da gravadora), saindo da banda que fundou antes mesmo do início da tour, duas
semanas antes do lançamento de “Stranger Than Fiction”, considerado por ele
mesmo, seu melhor trabalho no Bad Religion.
Seu substituto foi Brian Baker, famoso na cena Hardcore de
Washington por ter tocado no MinorThreat e no Dag Nasty. Ele
estreou no Bad Religion substituindo Brett no dia 20 de agosto de 1994, no Bizarre
Festival, na Alemanha, (também) antes do lançamento de “STF”.
Encarte completo de STF (clique para ampliar) |
Voltando ao disco, nem mesmo a capa escapou ilesa das tretas entre os
integrantes. Por não concordarem com nenhuma arte, a capa daquele que acabou
sendo considerado o melhor disco do Bad Religion foi simplesmente uma foto dos integrantes em preto e branco,
com as caras mais amarradas possíveis, diga-se de passagem. No encarte,
aproveitando a veia de cientista de Graffin, foram colocadas fotos da revista
Popular Science.
E chega de história. Vamos para
a Música! :)
Uma das capas do single de STF |
Como disse antes, “Stranger Than Fiction” é uma aula de
Punk Rock melódico, com o Bad Religion no pico de seu ápice criativo e sem a
mínima intenção de amaciar o som para figurar nas paradas de sucesso. “Incomplete” resume bem esse espírito,
abrindo o play com um chute no peito,
onde um feroz Greg Graffin grita uma rebelde letra com raiva jamais vista e
guitarras que, apesar de mais limpas, rasgam os falantes como nunca! Wayne Kramer, do MC5, tocou o barulhento solo de guitarra nesta faixa, composta por
Brett e que também ganhou um clipe como
4º single do disco.
Assista o clipe de “Incomplete”:
A segunda música é outro chute no
peito, na forma de “Leave Mine to Me”,
um Punk Rock certeiro e bem amarrado de Greg Graffin, com um letra que aponta
muitos dedos na (sua) cara! Já na faixa-título,
que vem em seguida, Brett admitiu que tentou soar como Elvis Costello como pano de fundo para uma letra sobre escritores
tidos como pessimistas, como, por exemplo, Jack Kerouac. “STF”, a faixa, acabou sendo o 2º single do álbum, e ganhou um clipe dirigido novamente por Gore Verbinski, que já havia trabalhado
no vídeo de “American Jesus”, do disco anterior.
Assista o clipe de “Stranger Than Fiction”:
Na faixa 4 temos a reta e direta
“Tiny Voices”, de Graffin, com uma
letra inspirada nas pessoas mortas nos conflitos da Bósnia, que aconteceu na
época.
Mais uma capa do single STF |
Em seguida é a vez da melhor do disco, a punker empolgante “The Handshake”, que inexplicavelmente
não se tornou single! Sua levada tradicional de Punk Rock, nas bases daquela
desenvolvida e imortalizada por Tommy Ramone, dá a tônica da música, que te
convida a pogar, paradoxalmente, junto a uma letra bem pessimista sobre
relações pessoais. Canção típica de Greg Graffin.
“Better Off Dead” segue na faixa 6, e pode ser tida como uma “música-modelo”
do que entende-se por “Hardcore Melódico”!
Harmonicamente bem estruturada, sua letra, composta por Brett, fala sobre “o
peso de carregar o mundo nas costas”, possivelmente inspirada no caos pessoal
que o guitarrista estava vivendo na época.
E a 7ª faixa é aquela que faz
valer você ter comprado o play! “Infected”,
a semi-balada do Bad Religion sobre uma doentia relação de amor e ódio de um
casal, tocou muito nas rádios rock e seu clipe
(com um tosco roteiro imposto pela
gravadora que não agradou à banda) rachou de passar nas MTVs!
Assista o clipe de “Infected”:
Composta por Brett, a música
começa de mansinho e cresce numa levada, que pode ser curtida tanto “numa boa”
quanto “pulando”, até atingir o ápice no pegajoso refrão “You and me have a disease...”. Foi nesse som que a Atlantic cometeu
seu maior erro na estratégia de
divulgação do disco, escolhendo-o para single somente depois de tentar (e
falhar) com “Digital Boy” e “STF”. O sucesso foi tanto que a gravadora acabou
lançando 4 versões diferentes do single,
incluindo uma com um EP ao vivo bem interessante.
Cenas do BR ao vivo na STF Tour 94-95 |
O 8º som, “Television”, ganha mais destaque pela participação de Tim Armstrong, do então emergente Rancid,
dividindo os vocais com Graffin, do que pela música em si. Composta por Brett
em parceria com Johnette Napolitano, do Concrete Blonde (ela já havia gravado backing
vocals com o BR no disco anterior, em “Struck a Nerve”), a letra divaga
sobre como a TV é a religião do mundo moderno, sendo que a palavra “television” é repetida várias vezes
seguidas, como um coro de “Aleluia”.
Em seguida, um “ahh forget it”
introduz “Individual”, que é mais um
dos Punk Rocks rápidos e diretos de Greg Graffin. “Horray For Me...” vem na 10ª posição do tracklist, e é mais um
desabafo de Brett sobre viver a vida no máximo, com todos os encargos que isso
te traz. O outro guitarrista do BR, Greg
Hetson, foi contra a inclusão da
música por causa da letra, mas ela acabou entrando porque os demais gostavam
da música em si.
Na faixa 11 há a simpática “Slumber”, uma canção de ninar que Greg Graffin
fez para seu primeiro filho, que ficou bem bacana com a estética sonora do BR.
Em seguida, Mr. Brett acorda o ouvinte do sono com a cacetada “Marked”, um hardcore de menos de 2
minutos, com letra sobre o que o guitarrista considera ser seu “conceito de espiritualidade”.
Os backing vocals tiveram participação de Jim Lindberg, do Pennywise.
Ainda sisudos na contracapa do single de STF |
“Inner Logic” e “What it is”
são duas que poderiam ser consideradas meros fillers, mas ainda assim trazem
uma empolgante levada Punker. E, fechando a versão americana do disco, há a controversa
e desnecessária regravação de “21st Century (Digital Boy)”, imposta por Brett e, certamente (mas não confirmado em nenhum lugar...rs),
pela gravadora Atlantic. A música não tem o punch, nem a velocidade da versão
original, mas ajudou apresentar um pouco do que foi o BR do fim dos Anos 80
ao público mainstream, que agora “tinha acesso” e “consumia” a banda. Foi o 1º single
do disco, obviamente ganhou um rodado clipe!
Assista o clipe de “21st Century (Digital Boy)”:
Seguindo na versão “mundial” do
disco, a vigorosa “News From the Front”
é um hardcore com um convidativo refrão “sing-along” e uma letra sobre a vítimas
da AIDS. Fechando o disco, há a mediana “Markovian Process”, de Greg Graffin, trazendo uma típica letra (para o BR) com
elementos do alter ego cientista do cantor. Na versão japonesa, o ouvinte
ainda encontra a também mediana “Leaders and Followers”, composta por Greg, passando a régua na bolacha.
Capas, capas, capas... |
Além de todas as 19 músicas
trabalhadas em “Stranger Than Fiction”, outras 3 foram compostas, mas acabaram
descartadas pela banda: “The Truth”,
“Fuck Up Children” e “Fanatics”. As demos delas e de outros 7
sons que entraram no disco podem ser conferidas abaixo:
- Hooray For Me
- Infected
- Marked
- Stranger Than Fiction
- Leave Mine To Me
- Fucked Up Children (inédita)
- The Handshake
- Slumber
- Fanatics (inédita)
- The Truth (inédita)
Rock Brigade de abril de 1995 |
A relevância de “Stranger Than Fiction” foi tamanha que o
disco foi o eleito “número um” na lista dos 10 melhores discos com guitarra de 94 da revista Guitar World, com “Smash” do Offspring ficando em 2º. O play também entrou em
muitas outras listas de “Melhores do Ano” de 1994, sendo inclusive bem
resenhado aqui no Brasil, na época do lançamento.
Pesquisando em meu acervo, encontrei uma resenha de "STF" que saiu na edição de abril de 1995 da quase finada revista Rock Brigade, que resume muito bem tudo que está escrito acima. Ela pode ser lida na íntegra logo abaixo:
Pesquisando em meu acervo, encontrei uma resenha de "STF" que saiu na edição de abril de 1995 da quase finada revista Rock Brigade, que resume muito bem tudo que está escrito acima. Ela pode ser lida na íntegra logo abaixo:
“Os baluartes do punk rock californiano estão mais vivos que nunca.
Ouvindo o trabalho do Bad Religion, que está na estrada há mais de uma década,
dá pra sacar a fonte onde beberam bandas como Green Day e Offspring. Os refrões
são irados e as letras transparecem a inquietude mordaz dos músicos. São 17
faixas com uma média de dois minutos (ou menos) de duração onde a banda
demonstra ter perdido um pouco de seu ‘punch’ inicial, mas continua certeira
como sempre, especialmente na faixa The Handshake, um convite à poga!” Nota 8, por Fernando Souza Filho.
Escute “Stranger Than
Fiction” na íntegra:
Grande post. Venho acompanhando suas resenhas do BR desde o How Could... Seu estilo de escrita é bem interessante. Enfim, estou ansioso para a próxima resenha, só espero não esperar mais 6 meses.
ResponderExcluirPuxa, Lucas, que legal! Obrigado pela força! Estou me programando pra postar a resenha do Grey Race ainda esse mês! Tbm não quero ficar mais tanto tempo sem postar... rs Obrigado!!! ;)
ExcluirLeo, você tem ideia de qual a tiragem da versão nacional em LP lançada pela Paradoxx do Stranger Than Fiction?
ResponderExcluirNão faço ideia, bro!
ExcluirCom exceção de Infected, as outras musicas do disco não são muito tocadas nos show...
ResponderExcluirParabéns pelos posts do BR. Muito bom, bela descrição da história dessa grande banda. Aguardando os próximos posts.
ResponderExcluirValeu!!! :)
Excluiré um ótimo disco, mas o acho superestimado. "recipe for hate" (embora 'cru', e isso, se tratando de uma banda punk, é algo excelente, quiçá fundamental), foi superior em tudo. E "the gray race" foi tão bom quanto "stranger than fiction"... otima resenha!
ResponderExcluirGrato pela resenha!
ResponderExcluir