É no ano de 1973, no Rio de Janeiro, que Sérgio Sampaio lança seu primeiro disco, "Eu quero é botar meu bloco na rua", pela Philips carioca, em plena ditadura militar, plena "tropicália tardia", emergindo junto com outros grandes gênios que se lançavam então, como os Novos Baianos, o lunático Walter Franco, Jards Macalé, Fagner, entre muitos outros. O começo dos anos 70 fervia com o debate político, vários militantes e artistas presos e exilados, experimentações em todas as artes, o movimento hippie que finalmente tinha chegado com força, enfim, um cenário maluco em que o capixaba Sérgio foi se meter, sendo locutor de rádio, no Rio.
Foi logo após gravar com os "Kavernistas", se apresentar no FIC-72, e lançar em compacto seu primeiro e maior sucesso (a própria "Eu quero é botar meu bloco na rua"), que Sampaio chama atenção da Philips, mesmo já tendo gravado alguns EPs até aquele ano. E junto com o grande hit ele nos presenteia com mais 11 canções, sendo apenas uma interpretação, todo o resto autoral. É um disco bem diversificado, mas que segue a linha "psicotropicalista" da época, misturando rock pesado com ritmos nacionais, fazendo experimentações com efeitos sonoros, sintetizadores, e tudo mais. O mais incrível é que Raul Seixas também assina a produção e os arranjos com Sérgio, e na banda ainda tocam Renato Piau (do Baiano e os Novos Caetanos) na guitarra, o lendário baterista Wilson das Neves e os virtuosos do grupo Azymuth, Alex Malheiros no baixo, Ivan "Mamão" na bateria e Zé Roberto Bertrami (infelizmente, já falecido) nas teclas. Melhor ainda: tudo extremamente bem gravado, bem produzido, qualidade de captura impecável. Viva Raul!
Com toda essa galera tocando, o disco não poderia ser no mínimo GENIAL. E é mesmo, em diversos aspectos. Primeiro pela escolha de um repertório bem eclético: do rock ao samba, do blues ao bolero, baladas, choro e a marcha-rancho da faixa título. Os arranjos são sensacionais, bem em sintonia ao que se fazia na época, bastante bateria e baixo, percussões geniais, guitarra muito bem colocada, diversos timbres de sintetizadores, etc. E por fim, mas não menos genial, as composições do Sampaio, que desde então já mostra o talento que tem pra compôr. As letras são super bem sacadas, variando entre a crítica política, a ironia da vida, a saudade, o amor, a nostalgia, e diversos outros temas que o jovem Sérgio abordava. O disco começa por um bolerão:
O baixão dinâmico
predomina. O piano entra pra complementar a harmonia, junto com um violãozinho
choroso, solando. Uma flautinha bem suave entra ocasionalmente só pra massagear
os ouvidos (ainda tenho dúvidas se é mesmo uma flauta ou um timbre de
sintetizador... tsc tsc). O mais bacana é ouvir Sérgio fazendo duo consigo mesmo,
dobrando a faixa de voz, contrapondo duas linhas melódicas, cantarolando, balbuciando,
se divertindo, enquanto o fade silencia a faixa. Excelente arranjo. Essa faixa
ainda tem um tipo de “easter egg”: que raio de barulhinho é aquele aos 43
segundos? Na letra, acredito que basicamente Sérgio está falando aqui do lhe dá
prazer: um belo bate papo e música, e principalmente de aproveitar esses “pequenos/grandes”
prazeres, porque um dia chagará o dia do “encontro
com Deus”.
Começa com um violão e uma bateria crescendo, enfim uma
explosão “épica”, o som já diz a que veio, será forte, pesado, tempestuoso. É
um rock, bebê! No melhor estilo psicodelia hard rock de bandas como o Cream e o
Led Zepellin (nos primeiros discos). O teclado dá lugar a uma guitarrinha wah-wah,
soando praticamente a música toda e o baixão continua ágil e dinâmico, com
linhas melódicas geniais. O refrão é menos pesado e dramático, é mais positivo,
“leve”, uma espécie de alívio. Esse contraste dá toda a beleza pra canção. E
afinal, que filme de terror é esse, em que temos que tomar cuidado ao sair de
casa, que dura o ano inteiro? Talvez a terrível realidade da ditadura militar?
O refrão explica: “No chão do cinema
Império da Tijuca, Cemitério do Caju”. É um filme que certamente tem
mortes, muitas mortes.
Essa canção na realidade é uma composição do pai do Sérgio,
Raul Sampaio, um daqueles clássicos samba-crônica, onde o cidadão comum reclama
da mulher, do seu temperamento, enfim. A primeira referência a família está
aqui, outras aparecerão. Essa, aliás, foi uma das faixas que teve algum impacto
na época. Sérgio começa num duo com um sintetizador (não parecem onomatopeias de
desenho animado?!), que, aliás, vai acompanha-lo em diversos momentos da
canção. Muito curiosa essa mistura. Um sambinha daqueles bem roots, com direito
a cuíca e tudo mais, e um sintetizador ridiculamente melancólico. É uma mistura
no mínimo genial. A simples introdução desse “elemento estranho” causa um
efeito único. Repare bem na relação da letra com os
momentos em que o synth toca. Sacou o que ele representa? rs
Um som bem mais tranquilo, o piano predomina aqui, o
sintetizador também marca presença forte, consoante com a melodia principal e, além
disso, tem belos trechos de orquestra de cordas. O baixo também sossega, mas
não menos genial. Os arranjos e sua poética dão todo o contexto pra leitura da
letra, sublinhando toda a empatia, a fragilidade, o drama, a dor, o amor. A
letra, novamente, tem ligação com seu pai, e com a família, sua história de
vida, sua infância, seus dramas mas também sua independência, a conquista de um
coração que não é “de vidro” e a paz
encontrada na aceitação da morte. “Não
ligue que a morte é certa, Não chore que a morte é certa, Não brigue que a
morte é certa”.
Essa começa lá em cima, com metais berrando e uma frase
muito doida no sintetizador. Logo o violão e a levada do baixo sugerem um
tango. Depois o som cai, e se transforma, 4 por 4, rock’n’roll, a levada logo muda,
é loucura, psicodelia pura. Volta a tal frase maluca. Quebra. Enfim. Bem dinâmico
com arranjos geniais de piano, guitarra e tudo mais. De quebra ainda tem mais
orquestra de cordas num fraseado doido, que morre de um jeito bem “weird”, rs.
GENIAL. Mas que raios afinal é esse Labirinto que espalha desesperança? Não
sei, mas tenho uma leve intuição de que novamente o tom aqui é político.
Mais uma balada suave, com piano no topo, com o baixo
contrapondo lindamente, numa dança linda. Incidentalmente, em momentos bem
específicos, as cordas dão seu recado. Muito bem encaixado, lindo. Apesar de no
geral ser tranquila, tem seus picos de intensidade, é sensível mas também
enérgica, e termina num fade que silencia um instrumental veloz e com pegada forte. Outra letra que pra
mim é um imenso mistério, foi mau galera... Rs. Alguma ideia? Comenta ai, por
favor!
Mais um som viajandão (isso é ou não é um trocadilho?). Já
começa com uma bela “tragada”. A letra é bem isso mesmo, fuga, movimento, cenas
surreais, a “caretísse” da família, enfim. Esse “trem era bão”, com certeza
absoluta. O sintetizador mais uma vez é peça chave, e já inicia mostrando a que
veio. A base da harmonia está no violão e no baixo, que também ditam o andamento,
já que as percussões são mais espaçadas, mais pratos que tambores. E o
sintetizador lá, brincando de inventar timbres, navegando no espaço infinito
das sínteses eletrônicas. Os cellos também tem participação especial nessa
faixa. A voz do Raul contrapondo a do Sérgio é um presente dos deuses da música
tupiniquim. E quem é “ela que ontem teve por lá”? Mais um enigma, no finzinho
da faixa.
Os gênios do Azymuth: Bertrami, Malheiros e Mamão. |
Aqui Sérgio oferece o ombro, oferece ajuda ao amigo, afinal “a barra está pesada” mas “a barra pode aliviar”. Estranhamente ele
diz que mora longe e pode “nem chegar”.
Será que ele quer mesmo ajudar? Ou será que algo (ou alguém) pode impedi-lo de
chegar? Baladinha com uma levada bem
bacana, alegre, levemente suingada. Pra variar o baixo é marcadão, dinâmico até
o talo, fala, fala, fala, e fala bonito. Acho que uma das melhores linhas de
baixo do disco é dessa faixa. Violão, piano e sintetizador se revezam (ou
competem) na melodia principal, contrapostos pelas cordas. Apesar de ser um
sonzinho suave, o instrumental no geral é bem dinâmico, e quanto mais a música
se desenvolve, mais ele cresce. Do nada a bateria se quebra num jazzinho bem
maroto, e a harmonia segue o embalo, logo se resolvendo novamente no tema
inicial. Sensacional. E aquele acorde final, hein? *__*
Bem mais enxuta que as outras faixas, apenas violão e voz. A
melodia principal do violão simplesmente maravilhosa, tão ingênua e delicada,
lindamente complementada por um violão (ou uma viola?) solo e pela voz do
Sérgio, que nessa faixa salta aos ouvidos. Mais uma vez Sérgio se refere a
família, agora a mãe, ressaltando sua origem simples, a falta que o filho lhe faz, a possibilidade
de ele nunca mais voltar, o amor materno.
10. Odete
Samba-choro danado! Não é muito diferente da “Cala Boca, Zebedeu”, a estrutura é basicamente a mesma, aquele suingue, as percussões, melodias, enfim. A diferença aqui está nas mudanças de andamento, nas quebras do ritmo, que se transforma de “samba de morro” pra “escola de samba” e logo em seguida “samba-rock”. Muito bem sacado. Essas variações aliás se encaixam super bem na letra. Aqui, Sérgio está preocupado com a Odete, com sua cabecinha “atrasada” e seu comportamento consumista. “E tudo isso com a preocupação, De ter na vida o bom de tudo e nada”.
11. Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua
O clássico que projetou Sampaio em nível nacional. Todo mundo pensa que Sérgio (e porque não, o povo brasileiro) ‘dormiu de toca, perdeu a boca, fugiu da briga, caiu do galho, morreu de medo, deu bobeira’. Mas não, ele quer é botar o bloco na rua, a boca no trombone, o ferro na boneca. É ao mesmo tempo um grito de liberdade individual e um ato político/social. Não a toa a canção fez muito sucesso (foi hit do carnaval de 73), caiu como uma luva pra época e milagrosamente NÃO FOI CENSURADA. A famosa marcha-rancho tem sua linha principal nos violões, tanto de base quanto o solo, que trazem a marca definitiva da música do campo. Pra complementar um baixo bem delineado e orquestras de cordas dando o contraponto dramático e “urbano”. Um acréscimo de trompete (creio) dá um toque bem latino pra coisa. No fim, um rufo de caixa deixa realmente a coisa com cara de marcha, marcadona, cheia, apressada. Os sintetizadores ainda estão lá, de forma bem mais singela, complementando a melodia nos graves, no fim da faixa.
12. Raulzito Seixas
“Eu queria gravá um negócio, rapaiz... tsc...” Voz, violão e um batuquezinho (acredito eu que gravado pelo próprio Raul), numa faixa bem curtinha, quase uma “vinheta” de encerramento. Um sambinha simples, direto, malandro. Nada mais. Com certeza, gravado num take só. Muito divertida, e foi bacana da parte do Sérgio prestar essa homenagem. O cara era muito generoso.
Bom, esse é o LP de estréia do Sérgio Sampaio. Uma estréia brilhante, diga-se de passagem. Foi um encontro muito feliz esse do cara com a galera do Azymuth (que oficialmente ainda nem existia) e a produção do Raulzito na parada. Arranjos maravilhosos, letras bem sacadas, gravação impecável. É um disco que de certa forma eu redescobri nessa pesquisa pro Blog, e fico muito feliz em poder comentar. Sampaio é um dos meus ídolos.
Sérgio e Raul, sabe-se lá quando... |
É isso galera. No próximo post, o maldito "Tem de Acontecer", de 1976, um disco ainda mais brilhante que o primeiro nas suas composições e arranjos. Aguardem. Só pra lembrar, os títulos das faixas também são links para as letras, beleza? E pra quem não pode adquirir o disco, dá pra matar a vontade aqui no YouTube. Valeu!