quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Sérgio Sampaio 2: "Tem que Acontecer", 1976

"Um livro de poesia na gaveta não adianta nada, lugar de poesia é na calçada".

Foi exatamente essa frase que me fez parar e reparar na obra do Sérgio Sampaio. Essa pérola está na terceira faixa desse disco, "Tem que acontecer", lançado em 1976 pela Continental, e que, infelizmente, foi um fracasso de vendas. Triste demais, visto ser um disco maravilhoso, com canções incríveis, bem gravadas, bem produzidas, com participações especiais de gente do naipe de Altamiro Carrilho e Abel Ferreira.

Esse disco tem algumas das melhores composições do Sampaio. A já citada "Cada lugar na sua coisa" é uma pérola da MPB. "Que Loucura", "Velho Bandido" e a faixa título não perdem em nada, também. O LP é bem mais voltado pro samba, menos diverso que o anterior. Mas não é menos genial. Mais uma vez, infelizmente teve pouca divulgação, pouca repercussão, pouca mídia. A imprensa e os críticos praticamente jogaram o Sérgio pra escanteio. Sua vida desregrada de noitadas também não colaborou pra que o disco tivesse um desempenho melhor.





Mas paciência. Felizmente ele ganhou uma reedição em CD pela Warner, mais recentemente. Justamente esse disco que um dia lhe consagrou o título de "Maldito da MPB", e que também diferenciou Sampaio de tudo o que a MPB já havia produzido, não pela sonoridade, mas pela carga poética, pela forma como o cara construiu suas canções, pela maravilhosa união da música popular às histórias da vida de um brasileiro médio, sonhador e artista. A faixa introdutória já é um prenúncio de como o album vai se desenrolar. Muito samba, letras fortes, extremamente pessoais, biográficas, crônicas da vida de um jovem Sampaio:

01. Até outro dia
Sambinha na caixinha de fósforo, tamborim, agogô, bumbo, cavaquinho, e tudo que se tem direito. O violão mantém a base melódica, e Sampaio canta, melancólico, que quem manda nele é ele mesmo, ninguém mais. "Por isso eu quero pedir pra você se mandar até outro dia em outro lugar". Ai! de quem disser pra ele o quê ele deve fazer da própria vida. Uma filosofia bem próxima dos pensamentos do Raul Seixas, aliás. Uma samba que poderia ter saído de qualquer morro carioca, de qualquer bairro de periferia brasileira, mas com um tom singular, imperativo e com um leve toque de ironia (uma das especialidades do Sérgio).

02. Que loucura
Torquato Neto, em 1972
"Fui internado ontem, na cabine 103...". E depois de dizer que é um homem livre, que não será nunca comandado por ninguém, não será submisso, ele é aprisionado num hospício, acusado de ser maluco, doido mesmo, psicótico. E talvez estivesse, em pleno 76 de forte repressão militar. Ele diz que está "doente do peito... do coração", mas admite que está "maluco da ideia, guiando o carro na contramão". O som me lembra alguma coisa perto do foxtrote (ou foxtrot), numa das suas variações mais lentinhas, meio que "encaixada" numa levada mais swingada, bem mais prum sambinha. Se não me engano, um sax super choroso dá um tom bem melancólico pra canção. E no fim, uma gaitinha bem marota, substitui o sax, trazendo um clima bem mais animado.

(Há quem diga que ela foi feita em homenagem ao poeta Torquato Neto, já então morto... cometeu suicídio em 72...)

03. Cada lugar na sua coisa
Ai vem o  momento revelador. Na verdade, sua loucura é também a fonte da sua criatividade, do seu fazer artístico. E esse não pode ficar preso num hospício, nem em lugar nenhum. "Lugar de poesia é na calçada... lugar de música é no rádio... Lugar de samba enredo é no asfalto". O poder da arte e da comunicação, e a importância desses meios serem públicos, divulgados, espalhados, acessíveis. Uma peça brilhante que começa lá no alto, com flauta, violão, baixo e percussões (que aliás são incríveis e super detalhadas), e que se mantém. Essa flautinha cria um ambiente etéreo, que contrasta com a firmeza da batida dos outros instrumentos. A harmonia me lembra alguma coisa próxima ao flamenco, e escalas latinas, como a da rumba. Mas o ritmo, de novo, é o samba, que come solto no finzinho da canção, o momento mais emocionante, a explosão de sentimento, a voz do Sérgio Sampaio em vibrato, incrível! "Aonde a pé vai, se gasta a sola, lugar de samba enredo é na escola". Essa foi a música que me fez prestar atenção no Sampaio, me fez querer saber mais sobre o Kavernista misterioso, o cara do "bloco na rua". É, pra mim, uma das melhores coisas que ele já fez e também uma das melhores que a música popular brasileira já concebeu, na boa.

04. Cabras pastando
E é isso ai bicho, Sérgio Sampaio não é cobra, nem carneiro, nem cachorro, nem cordeiro. Herói ou bandido? Poeta e cabra? Talvez. Nesse "blues" (com muitas aspas) bem animado, só nos violões, o cara dá seu recado, diz quem é e quem não é, cada lugar na sua coisa. Debocha mas não nega suas origens. É uma letra muito bem sacada. O violão solo come solto, sem parar, sem descanso e contrasta muito bem com a melodia da voz. No geral, é uma canção mais simples que as outras, mas mesmo sim tem seu brilho próprio.

05. Velho bode
O bolerão come solto nessa faixa. Aquele violão de chorinho, cavaquinho no contraponto, um batuquezinho suave só pra sambizar (...sorry...) o bolero, abrasileirar o acento latino. A sanfona entra bem pra complementar a harmonia, com aquele timbre que me soa tão nostálgico, dramático.  Agora, me pergunto que bode é esse que ele tanto rejeita, que ele culpa por tudo de errado que se dá com ele, um estorvo... Que bicho é esse que tá incomodando o Sampaio? O Regime? A mídia? Uma velha namorada ou um "amigo" que vive pedindo grana emprestada? Sei não... rs


06. O que pintar, pintou
O clima volta a esquentar nessa faixa, um sambão digno de roda de morro num domingo carioca, churrasco, cerveja, festa e luxúria, afinal, "o que pintar, pintou! se a barra subir, eu subo, se a barra descer eu desço... se você disser que quer, eu digo que quero também...". Bom, deu pra sacar, né?

07. A luz e a semente
Melodias suaves de flautas e piano. Uma das canções mais bonitas do disco, adoro essa. A poética dessa música é simplesmente maravilhosa, a letra é incrível. Dá pra imaginar Sérgio caminhando de volta pra casa, depois de uma boa noitada de som, goró e prazeres da carne, enxergando os primeiros raios de sol do dia, sentindo aquele sentimento de "o dia está começando". Mesmo bêbado, vadio, vazio, sem mais nada pra beber, tropeçando pelas calçadas, desmemoriado, ele está renascendo, voltando a ser "menino" na luz do dia (a semente que vai brotar), diferente do "adulto" noturno. O mais interessante é que de fato as estruturas harmônicas e melódicas do som traduzem muito bem esse cenário matinal. Brilhante.

08. Quanto mais
Mais um sambinha, ainda mais maroto e swingado que os anteriores, com tudo que se tem direito, inclusive coral feminino cantando em harmonia, no melhor estilo "raiz". Nesse ponto não tem nada de novo ou muito original aqui, porém a letra justifica a necessidade de uma melodia ordinária, um tema musical bem popular. O lance aqui é : menos é mais (e melhor). "Quanto mais eu sofro mais coração me aparece...".


09. Tem de acontecer
A faixa título é apoteótica, tem ares de peça épica, extremamente dramática, com harmonias que lembram as escalas árabe-flamencas. Começa com um toque sutil de mistério, percussões "fantasmas", e uma explosão que leva pro primeiro verso. O conjunto de cordas, no refrão, acrescenta uma dramaticidade extra ao som, sem falar da flautinha. A letra fala basicamente da impotência de escolher ou manipular o destino dos outros, do desconforto que essa sensação gera, do desespero de querer ajudar, interferir de forma positiva, mas ser impedido pela lei da liberdade. "Mas não posso fazer nada, não sou Deus nem sou senhor...". Sérgio tenta estender mão, mas parece que a mulher abandonada não quer ou não aceita ajuda. Mais uma vez, tema e composição casam divinamente.


10. Quatro paredes
Melancólica, cantada apenas com o acompanhamento do violão (acredito que gravado pelo próprio Sérgio). O arranjo é muito rico, e mostra a habilidade do cara, e principalmente nas melodias maravilhosas da sua voz. Um segundo violão entra pra criar um contraponto mais grave e deixa o som ainda melhor. A letra é tensa... rs. Mas é muito linda. Acho que a mais bonita do disco todo, apesar de todo rancor, é super sensível.

11.  Filho do ovo
Essa é uma sacada marota sobre a vida, as idiossincrasias humanas, e a condição que nos torna todos iguais, apesar de diferentes. "Todo filme tem mocinho e bandido, tanto faz receber prêmio ou castigo. É um vasto capinzal, que alimenta todos os famintos". Genial. Mais um sambinha, o cara gostava mesmo do negócio. A novidade aqui tá no naipe de mateis (ou madeiras?) que entra no início. Interessante, dá uma sonoridade bem diferente dos outros sambas do disco. Os backings cantados em coro feminino permanecem, assim como tudo o mais, bumbo, cuíca, cavaco, enfim...

12. Velho bandido
E pra acabar... mais um samba! rs. Agora bem mais parecido com o que conhecemos popularmente como chorinho. Flautas em contraponto, violão de 7 cordas comendo solto nos graves, cavaco, pandeiro, e toda a turma da percussão brasileira. Arrisco dizer até que tem um bandolim. Sérgio deixa sua marca, finaliza sua mensagem, com mais uma letra cantada em primeira pessoa (como outras várias aqui, e todas sensacionais). Pra mim, essa tem a melhor letra, não só porque é muito bem construída, a métrica, a poesia e tudo mais, mas também porque parece uma espécie de profecia. "...sou feio, desidratado e infiel, bolinha de papel, que nunca vou ser réu dormindo, e descobri como um velho bandido que já tudo está perdido neste céu de zinco". E ainda "...e como eu fui o tal velho bandido, vou ficar matando rato pra comer, ançando rock pra viver, fazendo samba pra vender... sorrindo". Parece que Sérgio já sabia que seria "consagrado" como um maldito da MPB. É como se ele tivesse percebido que não havia lugar pra ele na indústria musical, não só no fim do anos 70, mas principalmente nos anos 80. O sonho de ter uma música sua gravada pelo conterrâneo Roberto Carlos, nunca se realizaria. E com essa faixa tragicômica (afinal o som é bem irônico) ele termina o disco.

(Na edição recente (relançamento em CD) o disco ainda conta com três faixas extras: "O teto da minha casa", "Ninguém vive por mim" e "História de boêmio (Um abraço em Nelson Gonçalves)". A primeira, uma canção rancheira, campestre, com uma gaitinha que é uma delícia e letra bem bucólica, mas não menos poética. A segunda lembra um pouco o que Sérgio gravou no disco anterior, sonzinho bem suingado, com um refrão lindo e uma letra bem genial, bem autobiográfica (pra variar, rs), gosto muito dessa faixa. E a derradeira, um sambão choroso com a cara de "Velho bandido", uma canção "irmã" dessa última.)

 É, minha gente, assim termina esse disco antológico. O segundo e penúltimo da sua carreira (pelo menos em vida). O disco seguinte, "Sinceramente", sairia somente seis anos depois, em 1982, e faria ainda menos sucesso (ou melhor, seria um fiasco maior). Mas esse é assunto pro próximo post. Lembrando que os títulos das músicas também são links pras letras. Por favor, comentem! =D

Até já!

*Disco na íntegra:


4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Maravilha de 'estudo'! Adorei o cantinho de vocês! Voltem a escrever mais! Abs., Anna

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  3. Massa esse texto dissecando esse disco clássico menosprezado
    Valeuuu

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  4. Estou completamente viciada na obra do Sérgio. Só fico extremamente triste por ter gravado tão poucos discos...

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