O disco “Simples de Coração” vem de um hiato de 2 anos
desde o último lançado (quebrando pela primeira vez o ritmo de um disco lançado
por ano), que marca o que muitos acreditam ser o “final da fase clássica” da
banda.
Essa reinvenção pode ser atribuída ao fim dos Engenheiros
do Hawaii, como era idealizado, com a saída traumática do guitarrista Augusto
Moacir Licks, que envolveu inclusive briga judicial. Os novos Engenheiros
contaram a partir daí com o novo guitarrista Ricardo Horn, amigo do vocalista da
época da faculdade, e a chegada de Fernando Deluqui, que havia há pouco saído
do RPM e depois de algumas jams com a banda foi convidado a ficar, e de Paulo Casarin,
tecladista e acordeonista que tocou por 7 anos com o Pepeu Gomes.
O Power trio agora era um quinteto, porém, a formação seria
temporária.
Esse álbum marca o início de uma fase muito mais
experimental, cheia de regionalismo gaúcho – grande parte graças ao impacto do toque
nada sutil do acordeon de Casarin. Produzido em L.A./USA por Greg Ladanyi, que
buscava com o trabalho, recuperar a espontaneidade e o desapego ao perfeccionismo
(daí o “Simples de Coração”), o álbum segue a mesma linha anterior dos trabalhos
idealizados pelo Gessinger, a ideia de ser ouvido/sentido como uma canção
única, uma história sendo contada, a história do início de uma grande nova era para a banda.
O álbum também ganhou uma versão em inglês, que não foi
comercializada, mas que vazou (infelizmente em baixa qualidade) na internet - lógico.
Sem abrir mão do riff pesado no começo, cara de rock,
misturado com arranjos mais delicados, e o acordeon, que à essa altura você já
se acostumou e camuflou amorosamente lá no meio.
Essa é aquela música pra você que tentou a vida toda ser
completo, fazer tudo certinho, tentando ser perfeito e perdendo, ou se
desfazendo, de tudo aquilo que não saiu como você achava que seria o certo.
Perspectiva? Alienação? Marketing? Te desafio a definir.
Qual sua ideia de paraíso? Nada que o sistema não possa lhe
prometer, nada a que você também já não esteja conectado, inclusive, é tudo uma
questão de direção.
Um rock com riffs nervosos, vocal com reverb, o retrato da
donzelinha esperando na janela pelo príncipe que nunca chegou, chorando pelas
desilusões que ela mesma criou, da responsabilidade que era dela e ela nunca
soube.
Qualquer semelhança com tudo o que toda garota é ensinada
desde a infância é mera coincidência. Ou não.
De volta após quase dois meses
sem um post, eis que chegamos no disco divisor
de águas da carreira do Bad Religion,
aquele que fez a banda finalmente romper a barreira do Underground e estourar (nas suas devidas proporções) no Mainstream: com vocês, o magnífico “Recipe For Hate”!
E, como já virou praticamente um
clichê, sempre que uma banda atinge o
topo, o ápice comercial, é chegada a hora dos problemas internos começarem! E, assim como aconteceu com nomes
como Raimundos, Sepultura, Iron Maiden, Metallica e (quase) qualquer outra
banda que tenha chegado “lá”, os problemas do Bad Religion começaram assim que“Recipe For Hate” (ou “receita para odiar”, numa tradução
livre), seu 7º disco de estúdio,
foi lançado, em 4 de junho de 1993,
pela Epitaph Records, gravadora
independente de propriedade do guitarrista e compositor da banda, Brett
Gurewitz (ou Mr. Brett).
Mas vamos voltar no tempo, para o
comecinho de 93, um pouco antes dessa “bomba explodir”, para entender o que se
sucedeu...
Letras no encarte da versão brasileira (clique para ampliar)
Depois de terem dado uma “enxugada”
na fórmula musical de “Punk Rock com melodias” e mudar todo o processo de
gravação em “Generator”, o disco
anterior que saiu em 1992, Mr. Brett e Greg Graffin(vocalista e chapa que divide a composição no BR com Brett)
resolveram não fazer nenhum plano
para o próximo disco. “Acho que saiu um disco mais acessível, mas não dá pra
dizer que foi premeditado”, se defendeu o guitarrista, em entrevistas na época.
“Greg e eu realmente não conversamos nada sobre pra onde iríamos antes de
compor qualquer coisa.”
Brett (à dir.) mixando o disco com Paul Du Gre
A verdade é que, aliado a uma produção mais limpa, nítida e cristalina,
que trouxe um som de bateria bem mais evidente (e com a caixa dando aquele famoso timbre de lata de Nescau), feita
em pouco mais de 3 semanas, ao custo de 50 mil dólares, no estúdio de Brett, o Westbeach Recorders, na California, “Recipe For Hate” acabou trazendo naturalmente
músicas com um acento ainda mais POP,
endossadas ainda pelas primeiras experimentações
do Bad Religion com elementos do Rock
Alternativo (que estava em altíssima
evidência na época, com a cena Grunge de Seattle - Nirvana, Pearl Jam, Soundgarden
etc.),Folk(uma das paixões de Greg Graffin) e, até mesmo, música Country.
Com o 'parceiro' Eddie Vedder, ao vivo
Como se não bastasse, há ainda o
fator “participações especiais” a
ser somado na fórmula do disco, já que “RFH” trouxe seis músicos de fora pra
tocar, sendo os nomes mais famosos os de Eddie
Vedder, do hypado (na época)Pearl Jam, que emprestou sua chorosa voz
em “American Jesus” e “Watch It Die”, e Johnette
Napolitano, do Concrete Blonde,
que fez a já triste “Struck A Nerve” parecer um “limbo-com-ainda-menos-esperança”
com seus berros desesperadores na ponte da música. Ambos eram amigos da banda e
suas participações foram 100% na base da amizade. Já os demais convidados,
“não-famosos”, apenas tiveram solos de guitarra e slide guitar espalhados pelo disco...
O resultado desse
“descompromissado mergulho na experimentação com convidados ilustres” foi que,
pela primeira vez, o Bad Religion
figurou nas tão faladas paradas da Billboard,
com “Recipe For Hate” ficando 10 semanas
na chart “Heatseekers”, onde atingiu o número
14! E se no rádio tudo ia bem, na TV o negócio foi ainda melhor, com os
novíssimos clipes de “Struck a Nerve”
e “American Jesus”, o primeiro hit
da banda, passando sem parar, e em alta rotatividade, na MTV americana. Em termos de vendas, “Recipe For Hate” também fez o
BR bater todos os seus recordes, sendo que em setembro de 93, cerca de 3 meses
depois do lançamento, o disco já havia vendido mais de 180 milcópias só nos EUA, superando todos os lançamentos
anteriores.
E foi aí que começaram os
problemas...
BR em 93, ainda com Brett (de óculos)
E o que parecia improvável acabou
acontecendo da forma mais traumática
possível: o Bad Religion resolveu sair de
sua própria gravadora, a Epitaph,
depois de 13 anos, e o impacto da
ação gerou um seriíssimo racha interno,
com 4 membros de um lado CONTRA 1 único
remanescente do outro, apoiado nas muletas de ter o comando da gravadora da
banda. “O objetivo do Brett era mostrar o quanto o Bad Religion dependia da
Epitaph. O nosso objetivo era mostrar o quanto o Bad Religion amparava a
Epitaph”, disse Greg Graffin, sem dó, em uma entrevista de 1996. “Tudo ficou
bem mais difícil quando certas pessoas começam acreditar que elas são a razão
de tudo de bom que aconteceu”, alfinetou o baixista Jay Bentley em entrevista de 1997, referindo-se a Brett, de quem
era braço direito no trabalho, nos dias mais “independentes” da gravadora Epitaph
até o rompimento.
Com as vendas de “RFH” aumentando
dia após dia, a Atlantic Records,
uma gravadora “major” (ou seja, uma empresa
multinacional), enxergou o potencial do BR e fez aquela “proposta
indecente” para ter a banda em seu catálogo. Brett, que era dono da Epitaph e, consequentemente, de todo o
catálogo da SUA banda, se doeu todo
e não gostou nada da ideia. Mas, como ele dividia a liderança da banda com Greg
Graffin (que já estava “afinzão” de
tentar algo diferente, com “cara de mainstream” e não mais de “independente”),
além dos outros 3 membros da banda (Jay
Bentrey mais o guitarrista Greg Hetson
e o batera Bobby Schayer)
votando a favor da saída, o Bad Religion acabou assinando o contrato com a Atlantic e, rapidamente, ainda em 93,
“Recipe For Hate” foi relançado pela
major, fazendo Brett, que na época
havia voltado com tudo ao vício do crack (!!!), se morder de raiva de seus
parceiros, porém, ainda sem tomar atitudes mais drásticas.
Contracapa da versão nacional da Paradoxx
O contrato com a gravadora major
previa, além da inclusão do disco recém-lançado em seu catálogo, mais outros 6 discos(eles ainda queriam os direitos de “Generator”, mas Brett não deixou), e oferecia, entre outras coisas, “liberdade artística total” e aquela estrutura que “só uma banda em
gravadora major pode usufruir”, além
de uma distribuição mundial de seus
discos. E foi assim que os fãs brasileiros puderam adquirir o 1º lançamento nacional do Bad Religion
por aqui, com “Recipe For Hate” sendo distribuído em nosso território pela Paradoxx/Sony Music ainda em 1993!
Antes era só na base do importado...
Olhando para o disco, começando
pela capa, tem-se a bela arte de Fred Hidalgo (que também foi o responsável pela capa de “Smash”, do Offspring)
com os dois cachorros raivosos,
vestindo seus ternos amassados depois de um dia sufocante de trabalho, com um
fundo de vermelho-calor mais sufocante ainda! Clássica e bem atraente para
embalar as 14 faixas em 37 minutos da “receita
para o odiar”!
Capa da versão em K7
Mesmo com toda a tensão interna
causada pela saída da Epitaph, contrariando todas as expectativas, o Bad Religion estava em seu melhor momento
musical, tendo atingindo seu ápice
criativo com “Recipe For Hate”! Esse “momento mágico”, que talvez jamais
seja alcançado, durou ainda mais 2 discos, gerando uma 2ª trinca de discos clássicos na carreira da banda! Os fãs puristas
sempre vão preferir os 3 discos pós-retorno nos Anos 80: “Suffer” (1988), “No Control”
(1989) e “Against The Grain” (1990).
Mas nenhum será capaz de diminuir os discos que vieram nessa segunda leva: “Recipe For Hate” (1993), “Stranger Than Fiction” (1994) e “The Gray Race” (1996). Era o estilo
clássico de composição do BR, aperfeiçoado e levado às últimas consequências,
tanto que a partir de 1996, a banda passou apenas a se copiar (não que isso seja uma coisa ruim. Longe
disso, aliás... rs).
Arte do single de "American Jesus"
Voltando ao “RFH”, como já é
tradição abrir seus discos com a mais cacetada, o Bad Religion já começa o play
com a faixa-título quebrando tudo,
com seu riff cortante e simples e a letra de Graffin, que manda aquele recado
pra quem ainda acredita que a América foi “descoberta” por Cristovão Colombo! Ainda
é uma das mais tocadas nos shows até hoje! Na sequência temos a cheia de
influências country “Kerosene”, que lembra “Atomic Garden”, do disco anterior, e
tem tantos solos, que mal se escuta a base! Para tantos solos, participaram
como convidados os guitarristas Jon Wahl e Chris Bagarozzi.
E então chega a faixa 3 e um
inexplicável groove cheio de energia e incrivelmente simples (eles tocam apenas 4 acordes repetidamente a
maior parte do som...) de puro Punk Rock te pega pelo estômago e te segura
pra nunca mais soltar! Foi assim comigo quando ouvi pela primeira vez “American Jesus” hit máster do disco e,
quiçá do Bad Religion!
O “Jesus Americano” foi a
quarta música escrita por Graffin e Brett em parceria
na banda, sendo que o cantor apenas contribuiu com as letras dos versos,
enquanto o guitarrista fez todo o resto. A letraironizava o sentimento que
George Bush (o pai) tentou passar à nação americana, quando disse que eles
ganhariam a guerra do Golfo, porque “Deus estava do lado deles”. É como
ironizar aquele chavão nosso do “Deus é Brasileiro”! O clipe, produzido e
dirigido pelo amigo da banda Gore Verbinski, trazia mais amigos e alguns funcionários
da Epitaph perambulando vendados e carregando cruzes por Los Angeles, enquanto
a banda performava em um deserto não tão próximo a cidadeRed Rock Canyon, na Califórnia.
Veja abaixo o clipe de American Jesus:
Na sequência, vem “Portrait of Authority”, mais uma interessante
música Punk cadenciada de Greg Graffin (como “Faith Alone”), mas, dessa vez, com letra atacando o autoritarismo: “Há busto de mármore me encarando/E ninguém se
atreveria a derrubar/E isso determina o que é certo e errado.” Em seguida,
“Man With a Mission” mostra todo o experimentalismo de Mr. Brett ao
misturar Punk com o Country e Folk, com direito a vocal “dupla sertaneja” e até
mesmo uma slide guitar, tocada pelo
convidado Greg Leisz. A letra é uma clássica do BR, criticando quem segue
falsos líderes às cegas por aí.
Cartaz promocional de RFH
Ainda na sessão
“experimentalismo”, o play traz a interessante “All Good Soldiers”, com Mr. Brett arriscando tudo ao compor uma
levada groovada, diferente de tudo já feito antes pela banda, totalmente
inspirada no Rock Alternativo (leia-se:
Grunge) e que poderia estar facilmente num disco do Mudhoney! A letra, como o título entrega, ironiza os soldados
bonzinhos e fieis do exército. E, como se não bastasse, há ainda um solo de
guitarra feito pelo engenheiro de som assistente do estúdio de Brett, Joe
Pecerillo, como convidado (mais um!).
“Watch it Die”, de Graffin, vem na sequência, mostrando toda a paixão
do cantor pelo Folk de influência irlandesa, bem comum e enraizado na cultura
norte-americana. A levada feliz, e que poderia ser acompanhada muito bem por um
banjo (!), contrasta de maneira inteligente com a pessimista "letra apocalíptica fim do mundo”. Para ajudar, há ainda a participação do amigão
Eddie Vedder, do Pearl Jam, cantando a segunda estrofe da letra!
E já que Graffin se mostrou
pessimista, seu lado observador do cotidiano triste do mundo nos dias de hoje acabou
aflorando de vez, em forma de uma brilhante poesia, cheia de sentimento e
revolta, envolta por um Punk Rock certamente
composto no piano, na maravilhosa “Struck a Nerve” (tradução livre: “deu no
saco”): “Eu tento fechar meus olhos,
mas não consigo ignorar o estímulo. Se há um propósito pra vivermos aqui assim,
ele ainda permanece um segredo pra mim, então não me peça pra justificar minha
vida.” O clipe, dirigido por Darren Lavette, traz cores tristes e
blip-verts sem sentido.
Veja abaixo o clipe de Struck a Nerve:
Na faixa 9 está gravada “My Poor Friend Me”, uma das primeiras demos apresentadas para o disco (leia mais no fim do texto). Meio com
cara de filler, a música lembra algum
Hardcore dos primeiros discos da banda, mas, por estar com a produção mais
limpa, não soou tão agressiva. O trecho de piano que há na versão demo é
maravilhoso, mas inexplicavelmente foi limado da versão que saiu no disco (!!!). E já que o assunto é Hardcore, o Bad
Religion quis mostrar que ainda dominava a área com “Lookin’in”, que vem seguida. O som é todo feito em cima de um
esperto riff, a todo vapor, que a banda inclusive chegou usar como intro em algumas apresentações, e tem
uma letra do“doutor em Geologia” Graffin
sobre como a evolução humana é a também sua própria ruína.
Contracapa de single pirata de "American Jesus"
Já “Don't Pray on Me”, de Brett, música “irmã”
da “Man With A Mission”, é um country
puro, cantando em “dupla sertaneja” e cheia de slide-guitar. Se aproximando do fim do disco, “Modern Day Catastrophists”, traz o BR
fazendo um Punk Rock direto e reto, com acordes simples e cheios e levada super
empolgante. A letra “dá razão” aos “catastrofistas modernos” que espalham suas
teorias do fim do mundo.
E fechando as cortinas, temos aquela “lado B clássica”.
“Skyscraper”, a alegoria de Mr.
Brett sobre a história da Torre de Babel, onde Deus, mimado e com medo de
perder o poder, criou as diferentes línguas para o povo não se entender mais e
não poder construir a torre que alcançaria os céus... A sequência de acordes é
bem comum na música pop, soando como se os Beatles tentassem tocar um Hardcore
rápido! O coro de “Build me up” (tradução: “me construa”) no crescendo
final é épico!
E se o disco começou direto no
som, sem nenhuma intro, eles resolveram fazer uma “vinheta de encerramento” com
a faixa “Stealth”, assinada por Jay,
Brett e Bobby. Segundo o guitarrista, não é pra ter “nenhum significado”, o que
me leva a crer que a faixa foi claramente inserida no CD para gerar algum $ de
direitos autorais pro Jay e pro Bobby. Mas e o Greg Hetson? Por que não ganhou crédito$?
Cartaz de show de 93, com o Green Day
Na tour de “Recipe For Hate”, o Bad Religion teve o Green Day abrindo alguns shows, eles tiveram
a oportunidade de ouvir o disco “Dookie”
antes do lançamento. “Vejo vocês no topo,
porque vocês vão estourar. Ninguém está fazendo um som assim no momento”, previu
acertadamente Jay Bentley ao trio de São Francisco sobre seu futuro clássico,
que estouraria no ano seguinte.
“Recipe For Hate” fez o Bad
Religion atingir o status de banda
mainstream, tamanho alcance e popularidade que eles conheceram depois de seu
lançamento. Musicalmente, com o disco, eles dominaram como ninguém o caminho do
“Punk Rock Melódico” que eles mesmos traçaram como pioneiros anos antes. A vibe
de compor clássicos que Greg Graffin e Mr. Brett estavam vivendo no momento (que
durou de 93 a 96) superou todas as crises internas que o BR começou a sofrer
desde que tinha “chegado lá”! Foi como se a “maldição do sucesso” não tivesse
atingindo o setor criativo da banda, como o disco seguinte, o magistral “Stranger Than Fiction”, de 1994, o “ano que o Punk estourou”, veio a provar. Veremos isso no próximo post! Até
lá!
Escute “Recipe For Hate” na
íntegra:
BONUS:3 demos de “Recipe For
Hate” estão disponíveis no YouTube, e duas delas são de músicas que não
entraram no álbum. Confira todas abaixo clicando sobre o título: